A desonestidade de Padilha

O artigo da escritora Antonia Pellegrino na Folha, em contraponto a outro artigo de José Padilha no mesmo espaço, é devastador sobre a série O Mecanismo. Antonia diz que Padilha pretende dar lições contra desonestos quando comete a desonestidade de subverter a realidade para que ela esteja de acordo com as intenções da sua ‘obra de arte’.

Aí está o artigo.

José Padilha não entendeu o mecanismo

Antonia Pellegrino*

O cineasta José Padilha tem uma missão: desvendar o mecanismo que não cessa em oferecer um imenso passado pela frente ao país do futuro. Seu método? “Uma obra de ficção inspirada livremente em eventos reais, onde personagens, situações e outros elementos foram adaptados para efeito dramático”.

Sua dissertação abre a série, na boca do personagem Ruffo: “O que fode o nosso país não é falta de educação, não é o sistema de saúde falido, não é o déficit público, nem a taxa de juros. O que fode nosso país é a causa de tudo isso. Descobri o que fode a vida de todos os brasileiros: um câncer. Se a gente não matar essa porra na raiz, vai espalhar”.

Cabe a Ruffo, vivido por Selton Mello, enfrentar o mecanismo por dentro. Mas graças a um surto diante do “erro” cometido pelo Ministério Público no engavetamento do Banestado —que na série acontece no governo Lula—, Ruffo é expelido do mecanismo. Mas não desiste.

Uma década depois, por fora do mecanismo, o personagem bipolar vai usar qualquer método para combatê-lo. Inclusive a violência, a intimidação e o microterrorismo. Mas a metodologia não interessa. Se for preciso misturar fatos, distorcer e caluniar para caber na tese do diretor, não tem problema. Afinal, a desonestidade é sempre dos outros.

Os métodos de Padilha, assim como os de Ruffo, não importam: são em nome de um bem maior (não escrevo contra ou em defesa de nenhum grupo; quem cometeu crime, que seja investigado e, se provado, que se puna).

No oitavo episódio, o câncer é identificado. O mecanismo se dá pela articulação entre empresas públicas, empreiteiras, operadores e agentes públicos. E a solução para a política está fora dela. Na Polícia Federal, no MP e no ex-policial outsider bipolar disposto a tudo para quebrar a engrenagem.

Tendo tido a chance de criar a grande e inovadora narrativa sobre corrupção no país, o cineasta acabou fazendo um clichê binário, digno dos padrões mentais dos milicianos da narrativa “contra tudo isso que está aí”. Mas com um agravante: manejando com excelência as ferramentas de Hollywood.

No esquema do diretor, MP e PF estão fora da política. Não faz diferença a mudança de posição desses órgãos em governos distintos. Toda política é demonizada, desde dom João. Qualquer político, agente público ou empresário honesto será inócuo ante a força autotélica do mecanismo. O que se desenrola na tela, ao som da canção “Juízo Final”, é a condenação da democracia representativa.

O “efeito dramático” que Padilha deixa de presente ao país onde não vive mais é o caminho aberto ao fascismo “livremente inspirado” na figura psicopata do ex-capitão do Exército que finge ser de fora da política e promete pôr a casa em ordem no grito e na arma.

Se a eleição fosse hoje e Bolsonaro se elegesse, pelo sistema de Padilha estaria tudo ótimo. O mecanismo poderia ser quebrado. Que outros métodos extrapolíticos valem para romper o mecanismo? Uma ditadura militar? Não creio que a intenção de José Padilha seja a defesa de candidato algum ou mesmo de uma ditadura, mas é isso que seu mecanismo acaba sugerindo.

Nas últimas semanas, o Brasil cruzou decisivamente a fronteira da democracia e adentrou a várzea da barbárie. É grave que, neste momento, quando todos estão convocados para a defesa da democracia, o iceberg conceitual por baixo do que aparece na série de José Padilha resulte em um panfleto fascista.

Enquanto Padilha faz sua pirotecnia, o real mecanismo, das oligarquias e do rentismo —que capturam o Estado e orçamento público para seus interesses—, agradece.

  • Antonia Pellegrino é ativista e fundadora do blog #AgoraÉQueSãoElas, hospedado pela Folha

 

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