A pátria sem chuteiras

Publiquei esta crônica em Zero Hora em 14 de junho de 2014. Não torço pela Seleção desde antes do 7 a 1. Peço, como outros que pensam como eu, ser compreendido e respeitado na minha indiferença, assim como respeito os que continuam torcendo.

Não torço contra, simplesmente não torço. Apenas vejo futebol, gosto de futebol. Mas não acho que a Seleção represente meu sentimento de brasilidade a cada quatro anos.

Eis a crônica, que repete o que penso ainda hoje, quatro anos depois:

A PÁTRIA SEM CHUTEIRAS

Uma Copa, mesmo esta superfaturada, sempre nos devolve a um sonho da infância. Meu colega Henrique Erni Gräwer tem apenas 10 anos desde quarta-feira. Finalmente verá um jogo da Copa.

Ganhou ingresso no sorteio da RBS para os funcionários. Virou uma criança.

Recebeu um telefonema e foi informado de que poderia escolher entre quatro jogos. Escolheu Coreia X Argélia. Contará, daqui a algumas décadas, que nunca houve um jogo como aquele do dia 22 de junho no Beira-Rio. E pode aparecer até no filme oficial da Fifa com uma bandeirinha da Argélia.

Eu queria receber um telefonema parecido. A pessoa do outro lado da linha me diria: você pode escolher uma entre quatro finais de Copas passadas. Você entrará numa máquina (da Fifa, claro), que o levará à época escolhida.

A voz teria a entonação dos narradores dos anos 50. O telefonema seria com chiados e interrupções. E então eu iria para o dia 29 de junho de 1958. Estádio Rasunda, Estocolmo. Final entre Suécia e Brasil.

Escolheria o lado direito da defesa brasileira no primeiro tempo, onde poderia, quem sabe, ser capturado pelas câmeras. Ficaria bem perto do gramado, atrás de uma das placas com as propagandas da Telefunken, marca da primeira TV da minha avó Nina.

Veria ao vivo o cotejo que já revi cinco vezes no YouTube, onde o vídeo de toda a partida está disponível há um mês. Queria ver como Zito jogava muito mais do que se pensava, que a Suécia dominou quase todo o primeiro tempo e que Orlando era mais xerife do que Bellini. E ainda tínhamos Pelé e Garrincha.

O que eu queria testemunhar mesmo é um lance que nenhuma Copa irá repetir. Um momento que, se reprisado hoje com outros personagens, redimiria o Brasil de todo o desalento com a Seleção.

É uma cena famosa. Aos cinco minutos, logo depois do primeiro gol da Suécia, Bellini vai ao fundo da rede e pega a bola, caminha até a risca da área, onde encontra Didi, que está indo ao seu encontro. Didi se adona do balão e caminha em direção ao centro do campo.

Do momento em que pega a bola, até o centro do campo, são 40 passos. Didi caminha sem pressa, mas certo de que é possível dar um jeito naquilo. É a cena que eu queria ver ao vivo, mais até do que o gol em que Pelé aplica no zagueiro o mais fantástico balãozinho da história do futebol.

A confiança no futebol brasileiro nasce ali. É na convicção de Didi na resolução daquele impasse que o futebol nos tira, como diz o antropólogo Roberto Da Matta, da vala comum dos povos sem mapa.

O Brasil passa a existir para o mundo graças à magia de 58 e deve muito ao gesto do negro que se impõe para reverter as sinas de 50, com a tragédia no Maracanã, e a derrota para a Hungria nas quartas de final de 54 na Suíça.

Nelson Rodrigues anteviu que ali se estabelecia o vínculo entre pátria e futebol, quando o Brasil atrai os olhares do mundo para as artes de Pelé e Garrincha.

Mas agora a Copa de 2014 é a face sombria do que se construiu até aqui, ou o reverso do que Didi fez naquela final. Algo muito sério se extraviou pelo caminho.

É por isso que o Mundial superfaturado marcou sua estreia, por coerência, com a vitória da malandragem no pênalti simulado. E assim vamos ao Hexa. Torcendo numa bruma de suspeitas, constrangimentos, indecisões, vergonhas, civismos e cinismos. Quando se desfez a conexão com o gesto de Didi que abarcou a brasilidade?

A Copa no Brasil levou a Seleção a se exaurir como identidade. Pode ter chegado a hora de experimentar outros signos de pertencimento. Ou o bom mesmo talvez seja o que Erni vai fazer: ver Argélia e Coreia, sem aflições, comendo amendoim.

Se é que ainda há amendoim nos estádios, onde um pacotinho de ripples potato chips custa R$ 15.

(Uma observação: infelizmente, o youtube tirou do ar o vídeo oficial da final da Copa de 58.)

 

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