Servidão voluntária

Compartilho este belo artigo do meu amigo Abrão Slavutzky, publicado em Zero Hora.

Esta frase é poderosa: “A angústia gerada pelo desamparo é uma das principais origens do medo da liberdade”.

Servidão voluntária

Abrão Slavutzky*

Admiro os que não desistiram de pensar os enigmas da condição humana. Entre tantos enigmas um atravessou séculos como é o caso da servidão voluntária. Desde a metade do século XVI o desejo de submissão ficou sem explicação. Servidão voluntária é um paradoxo que revela como duas verdades contrárias não se excluem. Muitos, em busca da sonhada segurança, abrem mão da liberdade.

Foi o francês Étienne de La Boétie quem, em 1546, criou a expressão servidão voluntária. Escreveu sobre a tirania, o governo, o poder, a servidão e a amizade. Fez a pergunta difícil de responder: “Não é vergonhoso ver um número infinito de homens não só obedecer, mas rastejar (…)?”. Defendia a rebeldia do povo em não se submeter aos desejos dos governantes.

Trata-se de uma complexa questão do autoritarismo, mas também psíquica. A interpretação psicanalítica da servidão se baseia no masoquismo primário, o erotismo do sofrimento. O masoquismo é da condição humana definiu Sigmund Freud em 1924 em O problema econômico do masoquismo. Afirma que o masoquista quer ser tratado como uma criança pequena, desamparada, dependente, com necessidade de castigo. Essa necessidade é um alívio ao desamparo, pois tem alguém que goza, desfruta da sua dor. Nos   fazemos mal, com  fantasias de mal trato, pesadelos que expressam a necessidade de castigo. Sofridas são as mortificações, como os vícios de toda ordem, as parcerias destrutivas, entre tantos. Assim, o masoquismo se vincula à pulsão de morte. Essa poderosa pulsão é estudada logo  após o final da Primeira Guerra Mundial. Aliás, essa guerra marcou não só a Psicanálise, mas as artes através do surrealismo e a própria condição humana. Freud escreveu sobre a psicologia das massas e o mal estar da cultura. Construiu assim pontes  entre o indivíduo e a sociedade. E uma palavra irá crescer de importância que é o desamparo.

A angústia gerada pelo desamparo é uma das principais origens do medo da liberdade. Desde a perspectiva individual, todos nascem submetidos e amparados pelos pais. O desafio ao crescer é  a independência para buscar o seu caminho próprio. É difícil atravessar o deserto que leva da segurança imaginária ao desamparo de viver livremente.

A luta contra a servidão passa pelo desafio do desamparo. É uma vitória diminuir a tendência masoquista que nos constitui. Para isso  é preciso construir os vínculos de amizade que permitem manter a rebeldia criativa. O apoio dos amigos auxilia a cruzar a passagem da dependência à liberdade. Ajuda a pensar o lugar que cada um ocupa nos desejos dos progenitores, bem como na busca do sentido de vida.

Por outro lado, a servidão voluntária é estimulada politicamente. Vivemos  tempos em que crescem os inimigos íntimos da democracia. Há uma ameaça à sobrevivência dos ideais democráticos no nosso século: crescem as estruturas autoritárias no sistema político ocidental. Pode-se dizer que a democracia corre riscos.  Parte do povo pode se transformar em massa manipulável pelo Deus Mercado e seus representantes na economia e na política.  Todos usam os trajes da democracia e podem passar despercebidos. Passa a ser crucial recuperar o entusiasmo do projeto democrático-o poder do povo. Creio que esse entusiasmo passa por entender e se opor, em todos os níveis, a sedutora servidão voluntária.

*Psicanalista

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