O PAI DE ANDRIELLE

Alguns repórteres pouco anotam e guardam tudo na memória. Eu sempre fui um repórter anotador. Sem anotações, teria esquecido logo de nomes, frases, lugares, números. Meus rabiscos me salvaram de incorreções ao tentar lembrar tudo de cabeça, como alguns colegas fazem.

Mas nunca esqueci de um nome, por ser incomum e pela busca desesperada da sua dona, na tarde 27 de janeiro de 2013. Foi no Hospital de Caridade Astrogildo de Azevedo, de Santa Maria. Todos procuravam por Andrielle.

Durante horas, em meio a parentes que tentavam localizar vítimas do incêndio da Boate Kiss, eu ouvi várias vezes o nome de Andrielle. Eu estava ali como repórter de Zero Hora.

Os amigos Vagner e Kefen procuravam por Andrielle. O pai, Flávio José da Silva, a procurou durante toda a manhã, saiu desesperado do hospital no início da tarde e passou a tarefa ao cunhado Fernando Alves.

O tio de Andrielle insistia com os funcionários do hospital:

– Ela é morena, tem um piercing na boca.

Ninguém dizia ou se arriscava a dizer onde poderia estar Andrielle. Seu nome constava da lista das vítimas levadas para o hospital, afixada na porta da entrada. Mas ninguém sabia mais nada, e quem sabia talvez não estivesse ali para dizer.

Nem ali, nem em outros hospitais, nem nos hospitais de Porto Alegre, para onde eram levados os jovens em estado gravíssimo.

Todos negavam, mas desconfiavam do lugar onde Andrielle poderia estar. Não tinha como não pensar na desgraça, enquanto eu via outras famílias passarem naquela tarde pelo mesmo desespero, até o desfecho devastador.

Procuravam por Igor, Renan, Cassio, Lauro. Procuravam por Delvani, Jovani, Leonardo, Jarlene, Douglas. Cercavam enfermeiros, iam a guichês, sentavam-se nos bancos de um jardim onde todos choravam, zanzavam pelos corredores, iam até a avenida, voltavam, mas não saíam dali. Alguns dos procurados eram encontrados vivos, mas até o começo da manhã.

Enquanto o fim da tarde avançava, enquanto a notícia da localização era adiada e eles não suportavam mais, alguém da família, o menos fragilizado, era puxado por um fio de coragem e se dirigia aos frangalhos ao ginásio do Centro Desportivo Municipal, o Farrezão.

Ali estavam os mortos, enfileirados no chão, sobre uma lona preta, à espera de identificação. Ali ninguém queria procurar filhos, irmãos, sobrinhos, amigos, antes de esgotar as chances que se esvaíam durante o dia.

Eu vi procuras desesperadas no hospital serem interrompidas pela notícia de que o desaparecido havia sido encontrado no ginásio. Pessoas sumidas do Caridade estavam mortas.

No início da noite, quando comecei a escrever o texto para o jornal, liguei para o tio de Andrielle e ouvi a notícia de uma realidade que o pai, o tio, os amigos, eu, todos negavam. O corpo da moça de 22 anos havia sido identificado pelo primo Leandro Alves.

Andrielle Righi da silva, que iniciaria o curso de design industrial na UFSM naquele ano, foi um dos 242 jovens mortos na tragédia da Kiss. Ela e as amigas Flávia Maria, Vitória, Gilmara e Mirela, que haviam saído juntas para dançar.

Conversei por telefone com o pai de Andrielle no início da tarde de hoje. Ele me disse:

– Não quero que sintam pena de nós, quero apenas que sejam justos.

Reconto essa história porque o pai de Andrielle está sendo processado pelo promotor Ricardo Lozza. Silva enfrenta o processo por ter feito críticas duras à atuação do Ministério Público.

O MP também não gosta dele porque Silva gravou o promotor Joel Dutra, durante uma audiência, dizendo que havia “mutreta” na relação da fiscalização da prefeitura com a boate.

Dutra admitiu ao repórter Marcelo Canellas (que é de Santa Maria), no Fantástico de domingo, que havia mesmo suspeita de mutretas. E que não fez nada porque a polícia já estava investigando o caso.

O pai de Andrielle é o vice-presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM). Outros dois pais sofrem o mesmo processo.

Nenhum dos quatro réus processados por homicídio do caso Kiss está preso. Eles irão a júri não se sabe quando. Os pais processados podem ser condenados antes deles.

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#somostodospaiskiss

3 thoughts on “O PAI DE ANDRIELLE

  1. Essa foi a maior tragédia do mundo. É por ter sido a maior, esses absurdos e injustiças deveriam ocupar as páginas dos maiores jornais do mundo. Por favor Moises Mendes, através da tua competência, inteligência, senso de justiça e principalmente pelo Teu jeito humano de ser, divulgue a nossa maior vergonha para o mundo. TE admiro muito.

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