O PAI DO MARCELO

Conversei há pouco por telefone com meu amigo Marcelo Canellas. Ele estava na Rússia, como repórter da Globo na cobertura da Copa, quando ficou sabendo que o pai, o seu Zacheu, estava mal em Santa Maria.
Viajou para o Brasil e chegou a tempo de se despedir do pai. Seu Zacheu, que eu conheci quando o Marcelo e a Lúcia Ritzel me levaram à Feira do Livro de Santa Maria no ano passado, morreu ontem.
O texto que o Marcelo escreveu sobre o pai é lindo e comovente, porque todo filho e todo pai deveriam ter o direito a uma despedida. Eis o texto:

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A esta hora meu pai deve estar rindo à beça do voo desengonçado do anjo Malaquias, aquele a quem Nossa Senhora, devido a uma operação de urgência para salvá-lo das garras de um ogro, fez nascer-lhe apressadamente as asinhas na bunda. Ou então deve estar pulando amarelinha na porta do céu só para provocar as freiras que o ameaçavam na infância com as chamas do inferno por causa de uma ou outra traquinagem como, por exemplo, virar as fatias de pão na mesa do refeitório da escola com a geleia para baixo. Ou deve estar arrancando um meio-sorriso de Deus com alguma tirada espirituosa sobre o sexo das anjas.
Durante a longa viagem que fiz de Moscou a Santa Maria, onde vivi o momento purificador em que pudemos chorar juntos num abraço de despedida junto à cama do hospital, tive, antes de chegar, tempo suficiente para entender o quanto o bom-humor com que meu pai levou seus 83 anos de vida iluminou todos os que tiveram o privilégio de conviver com ele. A leveza e a suavidade com que enfrentava os mais embaraçosos desafios, inclusive o golpe traiçoeiro e violento da morte, lhe deu uma dose cavalar de coragem para manter intocada a altivez e a dignidade como marcas pessoais.
Meu pai dedicou sua vida a sua família e aos seus amigos, mas também a um ideal que germinava da terra. Como agrônomo extensionista, doou toda a força de sua energia àqueles que acreditava serem, por merecimento e vocação, os grandes artífices de uma nova era de justiça fundiária produtora de saúde e fartura: os índios, os colonos sem terra, os assentados, os agricultores familiares e todos os espoliados de um modelo econômico excludente e concentrador.
Eu, minha mãe, meus irmãos, meus filhos e sobrinhos, toda a família, seus amigos, parceiros e camaradas, somos todos gratos por tantos anos inspiradores de convivência. E sendo como ele é, sei que quebraria o gelo da tristeza com uma anedota qualquer: sabe a última do Zacheu? Sei, pai. A última do Zacheu foi partir fazendo morada em nossos corações.

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