O patrimônio ameaçado

Para quem ainda se dispõe a saber mais sobre as fundações que o governo Sartori decidiu extinguir, este texto é esclarecedor.

O QUE FAZEM NOSSAS FUNDAÇÕES HOJE SOB RISCO DE EXTINÇÃO?

Diante da aprovação, pela Assembleia Legislativa do RS, da autorização de extinção de nove fundações estaduais – das áreas de pesquisa, ciência, tecnologia, planejamento, comunicação e cultura – um grupo de intelectuais e artistas de nosso estado tomou a iniciativa de elaborar e divulgar uma Carta Aberta ao Governador e ao Vice-Governador do RS.

Nesta carta, foi solicitada a revisão do posicionamento do Governo em relação às fundações, a realização de uma audiência com signatários e a instalação de um fórum de diálogo e negociação, com representantes da sociedade civil, com o objetivo de formular alternativas para a superação da crise do Estado e o desenvolvimento do Rio Grande do Sul.

Assinada inicialmente por 66 intelectuais acadêmicos e artistas, a Carta Aberta foi encaminhada ao Gabinete do Senhor Governador, no dia 09 de janeiro deste ano, e tornada pública no mesmo dia, em um ato ao qual compareceram mais de 700 pessoas. Atualmente, são mais de 1400 os seus signatários, incluindo cidadãos da capital e de muitos municípios do RS, de diversos estados brasileiros e também do exterior.

Hoje, ainda aguardando a audiência solicitada ao Governo do Estado, o mesmo grupo de profissionais responsável pela elaboração e divulgação da Carta Aberta dirige-se à sociedade gaúcha, para apresentar informações básicas sobre as atividades destas fundações, que se constituem em seu patrimônio.  Acreditamos que os cidadãos gaúchos precisam saber qual a importância dos serviços que as nove fundações sob risco de extinção realizam.

                1 – A FZB, Fundação Zoobotânica, vale bem mais do que muitos conseguem imaginar. O Jardim Botânico (criado em 1958, abrigando o Museu de Ciências Naturais, fundado em 1955) é um dos únicos quatro do país na categoria A, não apenas por sua área, mas principalmente por suas coleções, que levaram décadas e um incalculável trabalho para se constituírem. A FZB possui, por exemplo, 450 mil exemplares de coleções da fauna e da flora do sul do Brasil (algas, fungos, liquens, crustáceos, aves, anfíbios, etc.), tanto exemplares recolhidos na natureza atual quanto fósseis. A FZB abriga 2.750 exemplares de fauna e flora que serviram para descrição de espécies novas, um material de valor rigorosamente incalculável. No Zoológico (criado em 1962), são mais de mil animais, de 250 espécies. No plantel de serpentes, são 350, de 15 diferentes espécies, usadas para extração de veneno que serve para produzir soro antiofídico. A FZB tem um banco de sementes para recuperar áreas degradadas. Cuida de um sítio arqueológico de mais de 70 hectares. Produz centenas de relatórios sobre a vida de animais silvestres e sobre a qualidade do ar na região do polo de Triunfo. Só a FZB pode fazer laudos paleontológicos, para atestar o valor de descobertas nesse campo científico e cultural. Atende dezenas de milhares de estudantes a cada ano, sejam de escolas, sejam de universidades, num trabalho para a preservação da fauna e da flora do estado. E quem faz isso são profissionais de biologia e veterinária que possuem uma qualificação que não se pode obter a não ser com um trabalho continuado.

                — Você acredita que uma empresa que não seja pública será capaz de cuidar permanentemente de toda essa biodiversidade, com a perspectiva de longo prazo de manter e acumular um conhecimento que é base do nosso futuro? Que uma empresa que não seja pública irá se dedicar da mesma forma à preservação de fósseis, que se constituem em um patrimônio da humanidade?

                2 – A METROPLAN, Fundação Estadual de Planejamento Metropolitano e Regional, criado em 1975, é a gerente do Sistema Estadual de Transporte Metropolitano Coletivo de Passageiros. Este sistema envolve a Região Metropolitana de Porto Alegre (34 municípios), a Região Metropolitana da Serra Gaúcha (10 municípios) e as Aglomerações Urbanas do Litoral Norte (19 municípios) e do Litoral Sul (5 municípios). O sistema alcança menos de 10% da área do estado, mas nesta região vivem 5,7 milhões de habitantes, mais da metade da população gaúcha, nela se localizam 70% da economia do estado e se realiza um total de viagens que atinge 12 milhões de passageiros ao mês. A METROPLAN coordena linhas e horários, fiscaliza todo esse universo e, entre outras atividades, avalia a proposta de criação de loteamentos imobiliários na região.

                — Você acha que um órgão que não seja público vai fazer o mesmo tipo de fiscalização de todo este sistema? Por exemplo, vai planejar o transporte colocando as necessidades dos passageiros sempre em primeiro lugar? Vai se empenhar em fazer as empresas de transporte cumprirem as leis de segurança de passageiros?

                3 – A CIENTEC, Fundação de Ciência e Tecnologia, criada em 1972, sucedendo o Instituto Tecnológico do RS, fundado em 1942, é o laboratório de alta tecnologia público do Rio Grande do Sul. A CIENTEC presta serviços ao governo estadual e a prefeituras, avaliando tecnicamente produtos e serviços, em termos ecológicos, de viabilidade econômica, de justiça social e de adequação cultural Da CIENTEC depende, por exemplo, a aprovação de itens como o concreto usado em estruturas complexas (como a Refinaria da Petrobras em Canoas, ou pontes como a do Guaíba) e em qualquer outra obra que envolva contratos superiores a 3 mil salários mínimos. Avalia também a qualidade de produtos e serviços nas áreas de eletroeletrônica, alimentos, química, construção civil e mecânica, combustíveis e biocombustíveis, saneamento e os chamados novos materiais. Quando é necessário recuperar prédios públicos, em um espaço de valorização cultural, a CIENTEC participa inspecionando e dando certificação. Em suas atividades a CIENTEC atua fiscalizando e pesquisando, para que produtos e serviços tenham qualidade e sejam confiáveis para o uso e consumo de todos.

                — Você acha que uma empresa que não seja pública vai fiscalizar os materiais utilizados em obras com o mesmo rigor, priorizando a qualidade para os usuários? Você acha que a indústria de alimentos será fiscalizada por uma empresa que não seja pública com as mesmas exigências de qualidade de processos e produtos, visando garantir a saúde pública?

4 – A FEE, Fundação de Economia e Estatística do Estado do Rio Grande do Sul, herdeira desde 1972 do antigo Departamento Estadual de Estatística, é encarregada oficialmente de estudar a realidade econômica do estado, para que os governos – estadual e municipais – possam planejar suas ações utilizando adequadamente os recursos públicos. Com este objetivo, por exemplo, a FEE calcula o valor anual e a evolução do produto interno bruto/PIB do Rio Grande do Sul. Produz os indicadores sociais dos municípios gaúchos, que permitem conhecer, por meio de informações sintéticas, a situação social dos municípios e das regiões do estado. Produz, ainda, a pesquisa sobre emprego e desemprego na região metropolitana de Porto Alegre/PED-RMPA, que acompanha de forma mais detalhada a situação do mercado de trabalho nesta região, ao lado de outras seis regiões metropolitanas do país. É responsável também pelas informações que orientam a distribuição do ICMS entre os municípios gaúchos.  Dos estudos da FEE, que precisam ser continuados no tempo e extremamente confiáveis (não podem, portanto, ser feitos de improviso, nem com informações distorcidas), resultam boletins com informações técnicas, base para que os governos e a iniciativa privada possam se programar, entendendo a realidade objetiva do Rio Grande do Sul. Órgãos federais de alta importância, como o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), que produz informes sobre a dinâmica da economia e da população no Brasil, como por exemplo o cálculo do PIB no país, utilizam o trabalho da FEE. A FEE realiza também estudos macroeconômicos da dinâmica da economia do Rio Grande do Sul integrada à economia brasileira e à economia mundial. Uma empresa interessada em conhecer nosso estado, com o objetivo de investir aqui, depende dos dados obtidos mediante estudos técnicos que só a FEE produz.

                — Você acredita que todos estes estudos e dados serão produzidos sem os quadros técnicos, a experiência e o patrimônio acumulados pela FEE? Você acredita que uma empresa que não seja pública será capaz de manter um processo de produção contínua de dados e conhecimentos de interesse público, de extrema precisão, que existe há quase meio século? Você acredita que a produção constante deste tipo de conhecimento pode depender da iniciativa de cada equipe de governantes eleitos ou de investidores privados?

5 – A Fundação Piratini, responsável pela TVE (com 42 anos de vida) e pela FM Cultura (com 28 anos de vida), desempenha um papel inigualável no cenário da comunicação no Rio Grande do Sul. Dando espaço para a produção artística e intelectual do estado como nenhum outro meio de comunicação, tanto a TVE quanto a FM Cultura possuem uma bagagem de conhecimentos e patrimônio, acumulados ao longo de décadas, suficientes para uma carreira de grande futuro em sua área de atuação. A especificidade destas emissoras reside no fato de serem voltadas majoritariamente para a difusão de práticas culturais, intelectuais e comunitárias de qualidade produzidas na sociedade gaúcha. Incontáveis são os casos de cantores, compositores, músicos, escritores, editores, diretores de teatro e atores, bailarinos e coreógrafos, artistas visuais, cineastas e fotógrafos cujas carreiras dependeram do espaço de exposição proporcionado pelas duas emissoras. Elas se tornaram detentoras de acervos de imagem e som relativos à cultura gaúcha que nenhuma outra emissora possui. A TVE guarda acervos de programas de entrevistas e reportagens, assim como de shows e coberturas ao vivo, que vêm desde os anos de sua fundação, especialmente desde os anos 1980. A FM Cultura é a única e exclusiva emissora de rádio que dá espaço simultaneamente para a cultura regional, a música popular brasileira, o jazz e a música erudita.

                — Você acredita que uma emissora de rádio e tevê aberta, não pública, tenha interesse em se tornar um canal de divulgação da produção cultural, intelectual e comunitária de boa qualidade da sociedade gaúcha, dispondo-se, por exemplo, a realizar entrevistas de 40 minutos com figuras da cultura gaúcha? Ou dando divulgação gratuita para a cultura hip-hop? Ou, ainda, levando a arte e o conhecimento de boa qualidade para a população que não assina canais a cabo?

                6 – A FEPPS, Fundação Estadual de Proteção e Pesquisa em Saúde, criada em 1994, como o nome indica, é um órgão público que lida com um valor essencial para qualquer comunidade e para todos os segmentos sociais. A FEPPS Congrega o Hemocentro do Estado, o Centro de Informação Toxicológica, assim como o Laboratório Central e o Laboratório Farmacêutico do RS. O Hemocentro coleta, processa e distribui essa substância tão essencial que é o sangue e seus derivados para cerca de 40 hospitais. O Centro de Informação Toxicológica é um agente público fundamental para o enfrentamento de acidentes tóxicos no estado. Ele reúne informações e toma iniciativas necessárias diante de situações em que haja vítimas de acidentes toxicológicos em geral, como os causados por pesticidas, plantas tóxicas, animais peçonhentos, drogas lícitas ou ilícitas. Por sua vez, o Laboratório Central do Estado, herdeiro de outro departamento da mesma área que existia desde 1926, lida com doenças transmissíveis e endêmicas, sendo responsável pela vigilância sanitária e ambiental. E o Laboratório Farmacêutico produz remédios de interesse amplo para a rede pública de saúde.

                — Você acredita que entidades que não sejam públicas exerceriam, com a mesma dedicação, atividades voltadas para o atendimento da população em geral e dos segmentos mais pobres atingidos, por exemplo, por uma epidemia?

7 – O IGTF, Fundação Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore, foi criado em 1974, com o objetivo de pesquisar e divulgar a cultura popular do Rio Grande do Sul, seu folclore, a tradição de sua arte e sua história. O Instituto possui uma biblioteca com 4 mil obras relativas ao folclore, ao tradicionalismo e às culturas das diversas etnias formadoras do Rio Grande do Sul. Possui também o Museu do Som Regional, com cerca de 6 mil títulos, que se constitui num acervo precioso de registros da cultura oral, do cancioneiro popular, da música, da dança e da arte regional. O IGTF auxilia instituições e pesquisadores interessados nas práticas culturais tradicionais do Rio Grande do Sul e promove e participa de eventos ligados ao folclore, como festivais e atividades do tradicionalismo gaúcho.

               — Sabendo da importância para a sociedade gaúcha de suas tradições e folclore, você considera desnecessária a existência de um órgão público dedicado à sua preservação, incentivo e divulgação?

                8 – A FDRH, Fundação para o Desenvolvimento dos Recursos Humanos, criada em 1972, atua em três áreas. Planeja e realiza concursos públicos, selecionando profissionais para a administração direta e indireta do estado, assim como para municípios e órgãos públicos. É responsável pela ampla área dos estágios na administração pública, um trabalho que tem aberto caminho para milhares de jovens, ao longo do tempo. Além disso, é responsável pela Escola de Governo, que é um sistema de formação continuada para servidores públicos e agentes sociais, que trabalha em parceria com universidades e outras instituições. Esses três campos de atuação, essenciais quando se tem em vista a qualificação do serviço público, são fundamentais para a modernização e eficiência da gestão pública.

                — Você acha possível garantir serviços públicos de qualidade sem que haja um órgão público responsável por uma política qualificada e abrangente de seleção e formação continuada dos servidores?

9 – A FEPAGRO, Fundação Estadual de Pesquisa Agropecuária, criada em 1994, é herdeira de estações de pesquisa que começaram a trabalhar em 1919 – há quase cem anos! –, aqui no estado. São mais de dez estações experimentais e centros de pesquisa espalhados em vinte municípios gaúchos. A FEPAGRO pesquisa e difunde tecnologia para a agropecuária, contribuindo decisivamente para este setor da economia tão importante na constituição do PIB gaúcho. Ela pesquisa, por exemplo, como aumentar o armazenamento de água no solo. Mantém um amplo e variado programa de pesquisa em medicina veterinária, descobrindo modos de combater doenças infecciosas dos rebanhos do estado e produzindo, por exemplo, vacinas contra a febre aftosa, a raiva, a brucelose e a peste suína. Ela também ajuda a manter a biodiversidade enquanto descobre variedades novas de sementes – são mais de 40 cultivares desenvolvidos pela FEPAGRO, em culturas como o feijão, a soja, o trigo, o sorgo, o azevém, a cebola e a mandioca –, contribuindo ao mesmo tempo para o desenvolvimento econômico e para a sustentabilidade.

                — Que outra instituição, pública ou privada, tem esse histórico de serviços prestados a um setor tão vital como a agropecuária? Como esses trabalhos e inovações preocupados com a biodiversidade e a sustentabilidade serão mantidos, sem a FEPAGRO?

Nossas nove fundações hoje sob risco de extinção têm uma atuação sem ou com pouco interesse de mercado, por isso se constituíram e se mantiveram, formaram e qualificaram seus quadros técnicos e acumularam conhecimentos e patrimônios por iniciativa do Estado. O fato de terem atravessado décadas de existência, passando por governos de diferentes visões ideológicas, indica a importância das funções que exercem para a sociedade gaúcha.

O gasto anual total do governo do estado com a manutenção dessas nove fundações, incluindo os salário e encargos sociais dos seus servidores, representaram apenas 0,69% do orçamento do Poder Executivo realizado no ano de 2016. Fica claro, portanto, que a extinção destas fundações não produzirá nenhuma economia significativa para os cofres públicos. Pelo contrário, parte dos serviços por elas realizados terão que ser contratados junto à iniciativa privada, sem dúvida por preços muito mais elevados.

Sabemos que as instituições públicas podem e devem prestar sempre melhores serviços e que as fundações sob risco de extinção possuem problemas e limitações a serem superados. Mas sabemos também que seus problemas e limites não justificam sua extinção e a eliminação das importantes funções públicas que realizam, orientadas em primeiro lugar e sempre pelos interesses da população gaúcha.

Porto Alegre, março de 2017

Grupo de Elaboradores da Carta Aberta ao Governador e ao Vice-Governador do Estado:

Benedito Tadeu César

Cientista político, ex-coordenador do LABORS/UFRGS e do PPGCP/UFRGS

Cláudio Accurso

Economista e ex-Secretário do Planejamento do Estado do RS

Enéas de Souza

Economista, psicanalista, crítico de cinema e ex-secretário de Ciência e Tecnologia do RS

Luís Augusto Fischer

Escritor, professor da UFRGS e ex-patrono da Feira do Livro de Porto Alegre

Maria da Graça Pinto Bulhões

Socióloga, professora da UFRGS

Moisés Mendes

Jornalista

Pedro Dutra Fonseca

Economista e ex-vice-reitor da UFRGS

Zoravia Bettiol

Artista visual, designer e arte educadora

 

 

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