AS CRIANÇAS E AS ESTÁTUAS

Uma menina, o pai e a mãe caminham entre estátuas num parque da cidade, dois anos depois da pandemia.

A criança tem nove anos. O pai é professor e historiador e a mãe é artista plástica.

A menina quer saber:

– Quem é aquele?

– O bandeirante anônimo.

– Por que continua ali depois da discussão sobre as estátuas?

O pai, historiador, sai na frente:

– Para que se entenda sua participação na História recente.

– Mas alguém pensou em lição de História quando ele foi posto ali?

– De alguma forma, sim. Ele foi homenageado pelos que viam os bandeirantes apenas como desbravadores.

– E vai ficar ali para que eu aprenda História?

Agora é a mãe que responde, com o ponto de vista da arte:

– A estátua tem valor cultural e artístico.

A criança retruca:

– Todos são figuras anônimas e todas têm valor artístico?

O pai intervém e aponta em direção a outras estátuas:

– Quase todos os homenageados têm nome. Aquele, aquele, aquele lá, todos têm nomes.

– Estamos rodeados de estátuas. Então todas são de gente importante na História.

– Tem gente de todo tipo. Muitos foram escravagistas, racistas, supremacistas, assassinos de índios, ditadores… Talvez a maioria.

– Mas estão aí pelo valor histórico… – diz a menina, deixando reticências soltas ao redor.

– E pelo valor artístico – diz a mãe.

A menina pensa um pouco:

– E ficaram aí porque nos acostumamos com elas?

– Também.

– E ficarão para sempre aqui por onde a gente passa todos os sábados?

– Vão ficando.

– Não poderiam estar num espaço fechado?

– Muitos acham que sim.

– Muitos?

– Talvez não a maioria.

– E todas as estátuas são de homens – diz a menina olhando ao redor.

– Raramente há mulheres – admite a mãe.

A criança provoca os pais:

– Poderíamos, em nome da História e do valor artístico, ter estátuas de Hitler?

– Talvez não. Mas há estátuas de imperadores romanos que são preservadas até hoje – diz a mãe em voz baixa.

A menina para, pensa e olha para a mãe:

– Quer dizer que daqui a alguns séculos olharão para Borba Gato como olham para Julio Cesar?

– Não se sabe, até porque não há como compará-los.

Os três continuam caminhando, sentam-se num banco da praça e a menina parece querer encerrar a conversa:

– Então, daqui a uns vinte anos, minha filha que terá a minha idade hoje poderá olhar para uma estátua nessa praça e perguntar: por que esse Bolsonaro está no meu caminho?

O pai e a mãe balançam a cabeça e, meio constrangidos, admitem que sim.

(Pelo fim de todas as estátuas de políticos, ‘líderes’ e poderosos de qualquer coisa em áreas públicas, para que restem nas praças quase só estátuas de crianças, artistas e bichos, publico a foto do memorial de Lidice, na República Checa. É uma homenagem em bronze, da escultora Marie Uchytilova, às 82 crianças mortas pelos nazistas no campo de concentração de Chelmno, na Polônia, em 1942. Essas são estátuas que não existiriam, se o nazismo tivesse sido derrotado antes de matar mais de 6 milhões de judeus, entre as quais mais de 1,5 milhão de crianças. Chega de estátua como representação de poder e de dominação. Chega de tentar confundir memória e História para deixar tudo como está.)

Abaixo, os links com reportagens sobre a história das crianças e do memorial

https://www.revistaplaneta.com.br/conheca-o-chocante-memorial-de-lidice-que-homenageia-criancas-mortas-pelos-nazistas/

https://misteriosdomundo.org/escultura-homenageia-82-criancas-capturadas-pelos-nazistas-no-massacre-de-lidice/

https://www.boredpanda.com/sculptures-children-of-lidice-czechoslovakia-czech-republic/?utm_source=google&utm_medium=organic&utm_campaign=organic

2 thoughts on “AS CRIANÇAS E AS ESTÁTUAS

  1. É a avenida Castello Branco? Existe logradouro com os nomes de Jorge Rafael Videla, Gregorio Alvarez e Augusto Pinochet, na Argentina, Uruguai e no Chile?

  2. Esse artigo me fez lembrar quando, há pouco mais de 50 anos, no segundo ou terceiro ano primário, nas aulas de geografia, tínhamos que decorar, além dos nomes dos principais “vultos de nossa história”, os locais onde se instalavam algumas das respectivas estátuas na cidade do Rio de Janeiro. Tiradentes na Praça Tiradentes? Não, em frente à Assembleia Legislativa. Barão de Mauá na Praça de mesmo nome? Isso. Mas, onde fica a praça: no Meier, onde morava, ou perto da praia? No Centro, perto da (então) rodoviária, onde se toma o ônibus para Miguel Pereira, não lembra? Então, em belos dias de fins de semana, para acabar com minhas dúvidas histórico-geográficas, meu pai me sentou no banco de carona do DKV-Vemag e lá fomos nós em direção às praças, largos e jardins onde se encontravam os “grandes vultos” moldados em bronze. Além de reconhecê-los, marcava suas localizações em um mapa. Assim, recebi uma boa ajuda para as provas e conheci boa parte da Cidade. Escola Isabel Mendes, 1966, 1967 …

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