BOLSONARO DESMORALIZOU O PALAVRÃO

A extrema direita acabou com a bandeira, com a camiseta da Seleção, com o verde-amarelo. Agora, ameaçam acabar com o palavrão. Bolsonaro tirou do palavrão o glamour de coisa da nossa gente, não só do que chamam de classes baixas, mas também das classes altas e distintas.

O debate sobre os limites do palavrão era mais ou menos como o da arte erótica diante da pornografia. A arte, a literatura toda, o cinema, o futebol, a linguística, a Bíblia, tudo lida com palavrão ou tem palavrão ou censura palavrão.

Bolsonaro esculhambou com a brincadeira, tirou o glamour do palavrão e transformou qualquer palavra dita chula em expressão da sua chinelagem. O palavrão foi ofendido, ultrajado e desmoralizado ao ser sequestrado pelo bolsonarismo.

O fascismo ameaça a arte de dizer palavrão, os anos de estudos que deram algum charme até acadêmico a palavras agora infectadas pelo bafo de Bolsonaro.

A Folha contou que naquela reunião do dia 22 de abril foram citadas 19 vezes as palavras coronavírus e pandemia. Mas só Bolsonaro disse 33 palavrões. No total, naquela sala foram ditos 41 palavrões.

O Brasil não sabe se continua ou não dizendo palavrão como dizia antes. O palavrão era parte do nosso cotidiano, do humor e do nosso imaginário e agora virou coisa de bolsonarista?

Tirei esse depoimento do perfil da psicanalista Camila Kfouri no Facebook (mantendo o texto com minúsculas, como ela escreveu):

“escrevi aqui mais cedo que ia parar de falar palavrão porque o excesso deles na tal reunião fatal de ontem me pareceu grosseiro e asqueroso. mas os amigos ajudam a pensar, né? e me fizeram concluir que não foram os palavrão a indecência da história. foi a escatologia. que é diferente. e que nunca nada que tenha saído da boca do inominável me ofendeu tanto quanto o dia em que ele pronunciou o nome “marielle”.

Meu amigo jornalista Carlos André Moreira escreveu isso, também no Face:

“Como um defensor contumaz das capacidades expletivas do palavrão, me causa perplexidade que tanta gente esteja escandalizada com o linguajar chulo do presidente e sua corja ministerial em vez de se concentrar no que é realmente grotesco: o conteúdo das falas.

É como ouvir:

“Já falei. É pra armar todo mundo, porra”.

E comentar:

“Nossa, ouviu isso? Presidente falando ‘porra’ em reunião oficial. Onde vamos parar”.

Li a Camila e o Carlos André e me lembrei então de uma história que gosto de contar em rodas de conversa em que quase todo mundo já está bêbado. A palavra porra está no centro da história.

Em 1974, ditadura no Brasil e no Uruguai, eu era repórter da poderosa A Platéia, de Livramento.

Meu amigo jornalista João Newton Alvim, editor da Folha de Uruguaiana, havia sido preso na cidade por ter publicado uma nota sobre os autênticos do MDB na capa do jornal.

Era esse o clima na fronteira. Um movimento em falso podia resultar em prisão sem muitas explicações.

Um dia, chego na redação e o editor-chefe da Platéia, Nelson Basile, me disse que eu deveria ir à Polícia Federal e me apresentar ao agente fulano de tal.

– Nem te senta. Vai lá agora. Tu andas escrevendo palavrões na tua coluna (eu tinha uma coluna). Eles telefonaram, implicaram com tudo e até com porra.

Fui sozinho à sede da PF, na Rua dos Andradas, a umas quatro quadras do jornal. Não lembro se sentia medo.

O agente me recebeu numa sala grande, toda revestida de madeira escura. Era uma sala mais sombria do que sóbria.

Me disse coisas cifradas, que eu não conseguia pegar, que se desmanchavam no ar, e insistiu que eu não deveria escrever certas coisas.

– Este é um jornal tradicional – disse o homem.

Eu tinha 20 anos, era um cara tranquilo, com amigos de esquerda, que bebiam muito e fumavam maconha, mas sem relação direta com nada e ninguém que pudesse provocar a ditadura.

A zona de fronteira era tensa dos dois lados, e eu morava em Rivera, o que podia ser um complicador. Mas era metido a engraçadinho quando escrevia.

O sujeito já maduro estava sentado diante de mim, cada um numa poltrona, naquela sala escura que parecia ser de espera. Perguntei ao homem o que eu não deveria escrever.

Ele olhou com firmeza e disse:

– Ontem mesmo tu escreveste porra. Não escreve porra.

Eu estava preparado para aquilo. Antes de sair do jornal, alertado pela informação de Basile, havia ido ao dicionário e lá estava: porra, arma medieval de madeira com um ferro na ponta, usada em batalhas etc. Daí veio a palavra porrada.

Eu respondi tentando passar segurança e sabedoria:

– Porra nem sempre é um palavrão. Pode ser uma arma de madeira…

O homem me interrompeu:

– Tu estás de brincadeira.

Eu me encolhi, ele se ergueu de repente, deu uma volta que chegou a levantar vento e entrou numa sala ao lado.

Bateu a porta e lá ficou por um tempo que não sei calcular direito hoje. Sei que fiquei o resto da manhã dentro daquela sala, sozinho, olhando para a madeira lustrosa com relevos que encobria as paredes.

Quando o homem voltou, parei de pensar no que estava pensando, e só pensava coisa ruim, e me preparei para algo inesperado. E o homem disse:

– Liberado.

Voltei ao jornal. Quando subi ao mezanino da redação, fui aplaudido pelos colegas. Era uma turma danada. Estavam debochando de mim. Queriam saber se eu estava mijado.

Era comum a PF, que também fazia o papel de polícia política, chamar gente do jornal para explicações. O próprio Basile já tinha sido preso. Como era bom fazer fuzarca naquela redação.

O resumo da história pode ser este. O sujeito não gostava do que eu escrevia, mesmo que não houvesse nos meus textos nada de mais incisivo em relação aos milicos.

A frase do homem da PF foi:

– Não escreve porra.

Se ele quisesse ser explícito, poderia ter dito:

– Não escreve, porra.

Faltou a vírgula. A ditadura tinha suas sutilezas. Tudo aparentemente por causa da porra de uma palavra.

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