CÉLI PINTO ESCREVE SOBRE A ROMA DE BOLSONARO

O texto a seguir foi publicado originalmente no jornal Sul21.

A infâmia

Céli Pinto

Professora emérita da UFRGS; cientista política; professora convidada do PPG de História da UFRGS

Michel Foucault, em uma brilhante aula no College de France, a 8 de janeiro de 1975, nos fala sobre soberanos infames e a autoridade ridícula. Afirma que, entre eles, encontram-se “todos os graus do que poderíamos chamar de indignidade de poder.” (p.16).

Foucault se nega a ver rituais ridículos e abjetos como coisa do passado, ou atos de quem está no poder como simples peças de decoração. Indica que o problema do soberano desqualificado, do infame, é também o centro do problema de Shakespeare e de seus reis trágicos. Lamenta, finalmente, não existir, até aquele momento, uma teoria da infâmia do soberano. E arremata:

“No entanto, mais uma vez em nossa sociedade, de Nero (que talvez seja a primeira grande figura iniciadora do soberano infame) até o homenzinho de mãos trêmulas que, no fundo do bunker, coroado por quarenta milhões de mortos, não se demanda mais do que duas coisas: que todo o resto fosse destruído acima dele e que lhe trouxessem, até arrebentar, doces de chocolate – vocês têm todo um enorme funcionamento do soberano infame”. (Foucault, 1999, p14) (tradução livre minha).

Foucault morreu precocemente, em 1984, e não teve tempo de conhecer os soberanos infames de uma nova cepa: os eleitos do século XXI, que só matam e nem comem chocolate, mas têm uma mídia a considerá-los soberanos como qualquer outro e se dedica a explorar detalhes burlescos de seus comportamentos.

Foucault, este grande analista do exercício do poder, mostra que o soberano infame não é um ponto fora da curva. Ao falar de Mussolini, afirma: “O grotesco de alguém como Mussolini estava absolutamente inscrito na mecânica do poder. O poder se atribuía esta imagem de provir de alguém que estava teatralmente disfarçado, desenhado como palhaço, como um bufão de feira.(Foucault, 1999, p13) (tradução livre minha)

É de poder infame, de soberano grotesco que se fala ao tratar do presidente do Brasil. Seu poder, sua popularidade se apoia em três pilares macabros: a vontade de se perpetuar no poder (para não morrer), a vontade dos grandes donos do poder econômico do país e a vontade de matar e morrer da população. Ele é perfeitamente infame no sentido foucaultiano, e a tragédia da pandemia da Covid-19 torna-se um palco especial.

Para ter poder acima de todos (mesmo que burlescamente), ninguém pode estar acima dele. No mundo real, entretanto, muitos pensam além dele e melhor que ele. Mas o infame fará qualquer coisa, até queimar Roma, para não ser derrotado. A ciência pensa mais que ele e a própria política, onde o soberano infame chegou por acaso, também pensa melhor que ele, mesmo que nem sempre com as melhores intenções.

Nero não se importou em queimar Roma e Hitler matou milhões, ambos na ilusão de terem a última palavra. Ora, em 2020, o soberano brasileiro tem inimigos poderosos, e um único e grande aliado que nunca irá traí-lo: o novo coronavírus.

Ele vai lhe dar a possibilidade de exercer seu poder grotesco e infame. Posiciona-se como um super-homem, aquele que não morrerá, encontra um remédio milagroso e o levanta frente aos fiéis como religiosos erguem divindades em procissões; é valente, vai ao encontro de seu povo, ao encontro de seus crentes, desmoraliza organismos internacionais e põe seus ministros da saúde a correr.

Então aparece a possibilidade da vacina. Mas derrotar o vírus significa a sua derrota. Derrotar o vírus é também derrotar a infâmia.

Desde muito cedo, quando ninguém prestava a atenção, o soberano tratou de espantar possibilidades de as vacinas chegarem ao Brasil. Tornou a vacina uma questão política. A rigor, tudo é político, mas – por menos qualidades que os políticos defensores da vacina possam ter – é sempre melhor fazer política salvando a população do que a matando.

Hoje o soberano infame encontrou mais uma forma de proteger o vírus, provocando o horror na população acuada e exausta: “Você pode tomar a vacina, mas algo de muito mal poderá lhe acontecer. Portanto, antes de tomá-la, terá que assinar um termo de responsabilidade”.

É óbvio que o grotesco soberano sabe que as classes abastadas, os medianamente educados não darão a menor importância a ele, mas também sabe que isso assustará a maioria, e um projeto de morte, que é igual a sua reprodução no poder, estará garantido.

O vírus e a matança que ele está promovendo e ainda promoverá são o grande aliado do soberano infame. O vírus vem realizando o projeto de morte tão claramente exposto pelo presidente e seu clã.

Não haverá empregos, não haverá hospitais, não haverá políticas públicas, não haverá crescimento econômico, não haverá cultura nem educação. Ganhou o poder infame: o soberano infame e o vírus, abraçados, veem Roma queimar e os fornos arderem. Os poucos sobreviventes aplaudirão. O infame estava certo, nada poderia ser feito.

FOUCUALT, Michel. Les Anormaux. Paris: Gallimard,1999.

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