CUBA E AS PERGUNTAS DE WILSON CANO

Morreu Wilson Cano, economista militante que nos ajudou a entender o Brasil e a América Latina no contexto de um mundo cada vez mais desigual.

Foi um dos fundadores do Instituto de Economia da Unicamp e defensor ativo das liberdades. Quando me dediquei ao jornalismo econômico, muito me inspireis em suas ideias. Wilson Cano, um economista de esquerda, estava sempre disponível a quem lhe pedia informações.

Escrevi há exatos 20 anos um texto sobre um livro dele, “Soberania e Política Econômica na América Latina”, em que tratei apenas da abordagem que fazia do futuro de Cuba.

Wilson Cano estava preocupado por achar que as concessões às reformas econômicas poderiam abalar as bases do socialismo cubano.

Cometo agora o atrevimento de compartilhar o artigo, porque parece assustadoramente atual, duas décadas depois, não pelo que escrevi, mas por manter as perguntas levantadas pelo professor, com quem tive a honra de conversar algumas vezes por telefone nos anos 90. Cano estava com 83 anos e morreu de câncer.

O MUNDO SEM FIDEL E SEM A CUBA COMUNISTA
(Publicado em Zero Hora em 27 de agosto de 2000)

Quem participa de reuniões de cúpula diz que nada disso será preciso quando Fidel Castro morrer. Sem Fidel, os convescotes das cúpulas estariam entregues à chatice dos Blair, dos Schroeder, da turma da Terceira Via, esse arroz empapado enfeitado com passas, que se requentou antes de sair da panela.

Fidel diverte, elogia todo mundo e usa o mesmo truque nos discursos. Aos vinte minutos, anuncia que já está terminando. Quando param de rir, ele já falou por mais uma hora. O que será das cúpulas sem o comandante que desafia manuais e tempos cronometrados?

A Cuba comunista imita Fidel, engana a plateia e espicha sua sobrevida, mesmo que a cada 20 minutos alguém anuncie que a ilha vai acabar, porque está escrito no cerimonial.

Se os cenaristas, videntes com doutorado, tivessem reputação, os cubanos teriam acabado com a de todos eles.

O economista brasileiro Wilson Cano está pedindo respostas para a mesma interrogação que se renova. Até onde irá a coesão social de Cuba, que aprendeu a socializar suas migalhas, agora que é ameaçada pela emergência da nova classe de trabalhadores dolarizados?

Cano escreveu Soberania e Política Econômica na América Latina (Unesp, 582 páginas), uma análise da crise na região. Cuba ficou no fim do livro, como a esfinge. O balanço, desde antes da revolução de 1959, é essencialmente econômico e ajuda a montar a pergunta que excita torcedores pró e contra o Cuba FC.

A ilha é um milagre que deveria ter acabado junto com o muro, em 1989. Entre 1989 e 1993, a economia encolheu 35%, o comércio externo, 75%, os salários perderam 75% do valor. Os cubanos repartiam o que havia sobrado de comida, luz, sabonete, gasolina, pasta de dente.

Os países do Leste consumiam 83% das exportações de Cuba, e só a União Soviética ficava com 70%. O fim do mundo comunista deixou Fidel sem subsídios e sem compradores e expôs a incompetência do centralismo e da burocracia para preparar o país para o desenlace.

Fidel começa então a abrir a economia a investimentos externos e a desestatizar a produção. Em 1992, acaba com o monopólio público do comércio exterior. A Constituição, que proibia a propriedade privada, abre exceção para a propriedade mista (privada e do Estado).

Em 1993, permite a “posse de divisas” (dólares) pela população e até a abertura de contas em moeda norte-americana. O trabalho por conta própria, com preços liberados, e as cooperativas são estimulados.

Em 1995, Fidel cria o Ministério para o Investimento Estrangeiro, e a economia é aberta inclusive a bancos, deixando de fora apenas a área militar, saúde e educação. A abertura atraiu mais de 350 grupos.

Os dólares do turismo e os enviados pelos cubanos que fugiram para Miami fazem com que 70% da população tenha acesso à moeda norte-americana e aos mercados paralelos de alimentos, roupas, bens duráveis. O resto só tem pesos e se submete ao racionamento dos armazéns subsidiados das libretas.

Esta é a interrogação de Wilson Cano, um economista de esquerda: o que será do socialismo, que pode estar gerando na própria recuperação as desigualdades do capitalismo?

Fidel, agora engravatado e amigo de João Paulo II, virou mago do empreendedorismo? Fidel é o ditador que Fujimori, Stroessner, Pinochet, Yeltsin, Médici e alguns democratas gostariam de ter sido quando crescessem.

Estariam livres dos dissidentes, expostos como os mafiosos da Flórida, e teriam gente com dentes bonitos, crianças na escola, SUS que funciona, medalhas na Olimpíada e a cúmplice vitalidade daqueles velhinhos músicos do filme Buena Vista Social Club, de Wim Wenders.

O povo cubano seria um resignado que se realimenta do civismo contra o embargo americano e assim suporta a ditadura? Isso explica os milagres de uma ilha primitiva? O que será do mundo sem os discursos de Fidel? O que será de socialistas, anticomunistas, gremistas e colorados sem a Cuba com a cara que tem hoje?

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