Elas foram presas e torturadas e sobreviveram para contar

O livro de Marcelo Rubens Paiva sobre a bravura da mãe dele será adotado pelas escolas públicas da Bahia. O livro da historiadora Ana Maria Colling sobre outras mulheres que enfrentaram a ditadura deveria ser adotado por todas as escolas do país.

‘A resistência da mulher à ditadura no Brasil’ foi publicado em 1997 pela Editora Rosa dos Tempos. O livro está aí há 27 anos. E muita gente cobra até de Marcelo Rubens Paiva, como fizeram no Roda Viva: por que não contam a história da resistência feminina de ‘gente comum’ aos horrores dos anos de chumbo?

O autor de ‘Ainda estou aqui’ reage com serena sinceridade. O seu livro é de fato sobre Eunice, uma mulher branca, casada com um homem rico, de uma família que morava no Leblon.

É isso, é um retrato. É uma abordagem daquela família e do seu drama com a prisão e o desaparecimento do homem da casa, o ex-deputado Rubens Paiva, em janeiro de 1971.

Que outros contem, na História, na literatura de ficção e no cinema, como outras mulheres enfrentaram a ditadura e foram perseguidas, presas e torturadas.

Ana Maria Colling saiu na frente dos narradores daquele tempo sobre vozes femininas. Conta no seu livro as histórias de resistência de seis mulheres. Figuras que muita gente nem sabe que existiram, e não só brancas e de classe média.

A doutora em História já lembrou em entrevistas que a mulher mais torturada era uma operária negra. Mas não fiquem só com resumos do que elas foram e sofreram. Procurem o livro e saibam seus nomes e suas histórias, como a historiadora gaúcha fez.

Sua empreitada é exemplar, porque reúne material da que é considerada a primeira obra historiográfica específica sobre a militância e a perseguição às mulheres na ditadura no Brasil.

O livro vale pelo que conta e pelo que Ana Maria revela ao informar sobre como chegou ao que de fato queria. E no início ela queria apenas saber de documentos oficiais sobre mulheres presas.

Chegou a ficar diante de 42 caixas com papéis do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), guardados pelo Arquivo Histórico, com registros de prisões no Rio Grande do Sul.

Mas o livro só passou a existir quando ela começou a ouvir mulheres militantes que haviam sido presas e percebeu que suas falas eram mais poderosas do que os documentos.

Os militares as definiam como “putas comunistas”, para tentar desqualificá-las política e moralmente. Eram consideradas “desvios do feminino e cometiam dois pecados aos olhos da repressão: fazer oposição à ditadura e abandonar seu lugar natural, o lar”.

As mulheres militantes presas são, nas versões dos repressores, “amásias e amantes, mal educadas pela família, mal amadas ou homossexuais e como apêndices dos homens, sem vontade própria, como marionetes”.

O livro resulta da sua tese de mestrado em História pela UFRGS, ‘Choram Marias e Clarices – uma questão de gênero na ditadura militar brasileira’, defendida em 1994.

Ana Maria Colling tem outras obras sobre estudos de gênero e do feminismo. E os depoimentos que ouviu das mulheres que enfrentaram os ditadores inspiraram outros trabalhos acadêmicos.

Os depoimentos são o que define como a revanche de mulheres na maioria dos casos ausentes de registros em documentos oficiais, porque o que elas viveram não deveria ser registrado e contado.

Quem cobra roteiros para outras abordagens daquele tempo, inclusive pelo cinema, tem aí o livro da pesquisadora sobre como a repressão construiu o que seria a “mulher subversiva” e sobre como essa mulher enfrenta a prisão, a tortura e também a discriminação dentro da própria resistência.

Os estudantes merecem conhecer a valentia de Eunice Paiva, de Dilma Rousseff e das mulheres que sobreviveram para contar como ajudaram a desafiar e a derrotar a ditadura e a fazer História.

(Este texto é dedicado à memória da socióloga baiana Lícia Peres, combatente pela democracia que abriu as portas para que a pesquisa de Ana Maria Colling acontecesse.)

2 thoughts on “Elas foram presas e torturadas e sobreviveram para contar

  1. É diante de textos como esse que NÃO me canso de questionar a presença aqui de eleitores da Direita Bolsonarista e Canalha..
    Como pode isso???

  2. Esse é um texto denso (e os livros citados mais ainda) que expõe o Mal que é a extrema direita!
    Para pessoas que têm um mínimo de decência e de humanidade ainda, é vergonhoso e triste olhar para a nossa História e constatar as monstruosidades que foram cometidas no nosso País, em nome de uma autoproclamada superioridade de pessoas arrogantes, soberbas e más, que não têm o mínimo senso de vida em sociedade.
    Aqueles que apóiam e aplaudem e torcem pela volta desse regime de ódio são tão soberbos quanto aqueles, mas, em sua estupidez, esquecendo-se que “uma injustiça cometida contra um é uma ameaça a todos”, como disse Montesquieu, inclusive a eles próprios. São pessoas individualistas, que não sabem viver em sociedade, carregadas de ódio por tudo e por todos que não sejam um espelho. Totalmente estúpidos, pois não sabem, nem mesmo, raciocinar por si mesmos.

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