POR QUE FAORO NUNCA FOI UM DECOTELLI
Raymundo Faoro, o autor de Os Donos do Poder, sempre na lista dos 10 livros mais importantes para a compreensão do que é o Brasil, não podia dar aulas. Faoro não tinha os títulos que o ministro Carlos Alberto Decotelli diz ter.
Decotelli se apresentou como mestre pela Fundação Getúlio Vargas, doutor pela Universidade Nacional de Rosário, na Argentina, e pós-doutor pela Universidade de Wüppertal, na Alemanha.
Vamos descobrindo que não é bem assim. O título da FGV teria sido obtido com textos plagiados de outros autores, além de ter erros grosseiros de português.
O título da universidade argentina não existe, porque a tese foi rejeitada. E o título da universidade alemã também é uma mentira, segundo a direção da instituição.
Mas Decotelli é ministro da Educação por indicação dos militares. Os generais entenderam que, por ser oficial da reserva e professor de institutos variados, ele iria moralizar uma pasta desmoralizada por dois antecessores fundamentalistas.
Pois retorno então a Raymundo Faoro, que presidiu a OAB na resistência à ditadura (apesar de titubear no começo), que escreveu ensaios sobre Machado de Assis e que refletiu sobre o Brasil como poucos intelectuais do século 20.
Reconto uma história que ainda repetirei muitas vezes, porque é decisiva para o entendimento do exibicionismo com títulos acadêmicos que existem ou não existem.
Por encomenda da Cláudia Laitano, entrevistei Faoro por telefone, acho que aí pelo final dos anos 90, para o caderno de Cultura de Zero Hora.
Ele já estava fraco e adoentado, mas parecia disposto, apesar da dificuldade para falar por causa do enfisema que o mataria. Conversamos, claro, sobre poder e política em geral, e a entrevista rendeu duas páginas.
No fim da entrevista, já botando conversa fora (o que não existe quando o entrevistado é Faoro), perguntei se ele estava lecionando. E Faoro me disse mais ou menos isso, com uma voz que carregava resignação e tristeza:
– Ninguém me aceita, porque eu sou um homem sem títulos.
Os livros de Faoro ajudam a formar doutores em muitas áreas até hoje, mas ele nunca havia conquistado um título de doutor. Nem mesmo de mestrado. Era apenas um advogado com diploma da Faculdade de Direito da UFRGS.
Não se preparou para as exigências, talvez porque achasse que não seria preciso. Mas havia na sua declaração de esnobado uma tristeza de quem queria, sim, dar aulas e não podia.
Faoro morreu em 2003 sem ter colaborado como professor. Dava palestras, mas não aulas regulares. Hoje poderia ser diferente, se alguém admitisse que teria notório saber?
Raymundo Faoro, um dos maiores pensadores do Brasil, não foi professor por não ter títulos como esses exibidos por Decotelli. E que, segundo a própria academia, não valem nada.