GALEANO E A DITADURA UNIVERSAL DO MEDO

Em 2008, Eduardo Galeano concedeu essa entrevista por e-mail, publicada no Caderno de Cultura de Zero Hora. Conversamos antes da vinda dele a Porto Alegre para lançar seu novo livro, Espelhos.

Esta semana, na quinta-feira, dia 3, o escritor completaria 80 anos.

Galeano veio e lotou o auditório da Assembleia Legislativa de jovens, numa noite em que muita gente ficou do lado de fora.

Quando combinamos a entrevista, o uruguaio estava feliz, porque se considerava curado de um câncer de pulmão. Galeano morreu sete anos depois, no dia 13 de abril de 2015.

Acho que vale a pena compartilhar a entrevista de novo.

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ZERO HORA/Caderno de Cultura

Eduardo Galeano: “Me apaixona a realidade, com suas histórias secretas e suas zonas invisíveis”

Moisés Mendes

Eduardo Galeano não gosta de conversar por telefone e tampouco pela Internet. Mas assumiu, em junho, o compromisso de falar com Zero Hora sobre seu novo livro, Espelhos – Uma História Quase Universal, assim que a tradução fosse concluída pelo jornalista e contista Eric Nepomuceno.

A entrevista destas páginas foi feita em outubro. É o resultado de uma troca de e-mails com o escritor uruguaio, que estará em Porto Alegre de 12 a 14 de novembro para a Feira do Livro.

Há três anos Galeano não vem ao Rio Grande. Foi convencido a voltar por seu editor, Ivan Pinheiro Machado, da L&PM, que lança suas obras em todo o Brasil desde o início dos anos 1990.

Espelhos é o 13º livro do autor no catálogo da editora gaúcha, que só não edita As Veias Abertas da América Latina, de 1970, o primeiro best-seller de Galeano.

Espelhos está na lista dos mais vendidos na Espanha e na Argentina. Traz 600 relatos breves elaborados pouco a pouco, com releituras que Galeano faz da história e de personagens bíblicos.

Começa com Adão e Eva, passa por figuras e episódios emblemáticos e vem até hoje. Personagens brasileiros e gaúchos estão em Espelhos, que tem o mesmo pretexto do conjunto da obra de Galeano: recontar, muitas vezes com mordacidade, episódios que a história oficial camuflou em versões glamourosas.

O autor se define como um escritor que remexe no lixão da história e continua implacável com mitos e heróis, inclusive os uruguaios.
A entrevista foi respondida de sua casa em Montevidéu. Na tradução, foram mantidas deliberadamente algumas expressões em espanhol.

Galeano fala do livro, de Cuba, do rompimento com o presidente uruguaio Tabaré Vázquez, de Barack Obama e de futebol. Escritor com origem no jornalismo, declara seu apego incondicional ao jornal impresso e ao cheiro da tinta no papel.

Zero Hora – Espelhos tem no título e no subtítulo uma referência a Borges. O livro é uma leitura da história de um modo borgiano?
Eduardo Galeano –
Jorge Luis Borges odiava os espelhos porque multiplicam as pessoas. Porque multiplicam as pessoas, lhes rendi uma homenagem no título do livro.

ZH – Remexer na história, como faz desde Veias Abertas, é a sua obsessão?
Galeano –
Fui um péssimo estudante de história, e os museus me aborrecem. Me apaixona, isso sim, a realidade, com suas histórias secretas, suas zonas invisíveis que escondem as pequenas coisas da vida cotidiana. E isso vale para o presente e para o passado. E vale para a realidade desperta e para a realidade adormecida, ou que acontece enquanto dorme e tem sonhos e pesadelos.

ZH – Como é possível falar da história com tanto lirismo, se invariavelmente a história oficial trata tão mal os personagens que o senhor retoma com poesia?
Galeano –
É ela, não sou eu. Ela, a realidade, é que que me oferece essa poesia. Eu a traduzo, trabalhando duro para ser digno de sua capacidade de ser bela. E encontro a mais alta beleza na lixeira da história, ali onde repousam os desdenhados, os ninguém, os que têm voz mas não são ouvidos. Elas e eles são os que fulguram com as luzes mais deslumbrantes no ignorado arco-íris da terra.

ZH – Quanto tempo o senhor levou para escrever Espelhos?
Galeano –
Não sei. Os livros me escrevem, muito lentamente. Vão crescendo dentro de mim, pouco a pouco, e vão se armando a seu modo e a sua maneira. Essa aventura louca de contar a história desconhecida do mundo nasceu sem que eu me desse conta, a partir de relatos que fui escrevendo sem saber por que e nem para quê. Durante anos, não sei quantos, até que isso se converteu num livro de 600 relatos breves.

ZH – Como conseguiu recontar tantas histórias, algumas aparentemente banais?
Galeano –
De alguma maneira mágica, Espelhos foi adquirindo uma estrutura, uma armação, que no começo podia parecer produto do manicômio, porque mesclava os tempos e os lugares sem tom e sem som, mas foi ganhando coerência sem perder sua essência. E à margem das normas tradicionais seguiu mesclando passado e presente e oferecendo vários mundos ao mesmo tempo. Enquanto esse processo acontecia, eu encontrava mais e mais histórias que valia a pena contar, e cada uma buscava e encontrava seu lugar no conjunto. Mais de cem histórias ficaram de fora. O sacrifício não foi fácil. Elas, todavia, me acusam, me golpeiam a espalda, me perguntam: por que me jogaste no exílio?

ZH – Como foi o entendimento com o brasileiro Eric Nepomuceno em mais essa tradução?
Galeano –
Acompanhei o trabalho de Eric passo a passo. Sugeri, propus mudanças, mas ele teve sempre a última palavra. Amo o jeito brasileiro de falar, mas ele sabe melhor. Essa diferença o favorece.

ZH – Heróis oficiais são tratados em seus livros de forma implacável, como Fructuoso Rivera, o primeiro presidente uruguaio. Chegará o dia em que alguns heróis que “civilizaram” seus países matando índios e negros deixarão de ser nome de rua?
Galeano –
É difícil. Enquanto o poder não for trocado, seus donos continuarão nos proibindo de recordar. Rivera é nome da maior avenida do Uruguai, e outro assassino de índios, o general Roca, tem a estátua mais alta da Argentina.

ZH – Um gaúcho que é nome de rua e merece ser nome de rua é citado no livro, o médico Sebastião Leão. Como sabia das pesquisas de Leão em Porto Alegre sobre as causas da criminalidade?
Galeano –
Faz muito tempo. Nem me recordo mais quem me falou dele e me passou essa informação. Era uma história que queria ser contada, e eu enfim a contei quando chegou a hora de fazê-lo. Esse médico gaúcho reunia honestidade, talento e coragem, três virtudes que raras vezes andam juntas.

ZH – Espelhos conta que, dependendo da época, das circunstâncias, dos interesses e dos preconceitos, o diabo é judeu, muçulmano, negro, homossexual, mulher, índio. Qual é o diabo de plantão no momento?
Galeano –
No teatro do Bem e do Mal, Deus e o diabo trocam papeis. Stálin, Saddam Hussein e Bin Laden eram bons, buenísimos, antes de serem maus, malísimos. Este último, Bin Laden, está sendo no momento o diabo de maior duração nos tempos que correm: ele é um burocrata a serviço da ditadura universal do medo, sempre pronto para assustar a opinião pública anunciando que vai comer crianças vivas.

ZH – Tem lido algum autor brasileiro?
Galeano –
Muito mais que lido. Monteiro Lobato alegrou minha infância. Machado de Assis ainda é, a meu juízo, o melhor escritor latino-americano do século 19. Darcy Ribeiro eu não só li como tive a sorte de tê-lo como meu mestre durante seu exílio em Montevidéu. Também tive a sorte de escutar os poemas sujos de Ferreira Gullar em primicia pronunciada da sua boca, durante seu exílio em Buenos Aires. E paro aqui, porque a lista seria extensa e soaria a demagogia.

ZH – A Internet ajuda ou atrapalha a literatura?
Galeano –
Reconheço que ajuda. Eu tinha preconceitos contra os computadores, porque suspeitava que bebiam à noite e que por isso, durante o dia, por causa da ressaca, faziam coisas incompreensíveis. A suspeita continua, mas isso não me impede que reconhecer a utilidade da internet e outras utilidades dessa máquina. É um paradoxo que alimenta o otimismo: a internet nasceu a serviço da morte, para programar as operações do Pentágono em escala mundial, e agora serve, entre outras coisas, para difundir vozes alternativas que antes tocavam sinos de pau. E também para que se conheçam escritores que antes estavam condenados a escrever para a família.

ZH – O senhor usa a Internet para conversar?
Galeano –
Não, não cheguei a isso. A contragosto, uso o telefone, e isso não me agrada muito. Para mim, um pré-histórico, a conversa ocorre corpo a corpo e cara a cara.

ZH – Lê jornais na internet?
Galeano –
Não, tampouco. Me agrada que os jornais estalem na minha mão e que cheirem a tinta.

ZH – Em julho, em Montevidéu, o senhor foi homenageado por todos os presidentes do Mercosul. Mas o presidente uruguaio, Tabaré Vázquez, não apareceu. O que aconteceu?
Galeano –
Sim, é verdade. Fui eleito o primeiro Cidadão Ilustre do Mercosul, e o único governo que faltou ao evento foi o governo do meu país. Por quê? Não sei. Terás de perguntar a ele.

ZH – O senhor votou em Tabaré para presidente em 2004?
Galeano –
Sim, votei.

ZH – Tabaré estaria ressentido com suas críticas às indústrias de celulose (que estavam se instalando no Uruguai), as chamadas papeleiras?
Galeano –
Nem sequer são papeleiras. São empresas gigantes, estrangeiras, que produzem celulose, a etapa mais tóxica do processo de fabricação do papel, para exportar matéria-prima para fábricas distantes. É o pão para hoje e a fome para amanhã. Eu propus que se instalassem em Punta del Este, para melhorar a qualidade de vida do balneário, mas não me deram atenção. O Uruguai, país pequeno, está hipotecando seus recursos naturais. Essas empresas gigantes vão envenenar o ar, vão secar a terra e chupar a água. Nós, latino-americanos, levamos cinco séculos repetindo a história. Já é hora de recordar que os recursos naturais se vão sem dizer adeus.

ZH – Tabaré pode ser colocado ao lado de Chávez, Lugo, Morales e Rafael Correa como um dos novos líderes da esquerda latino-americana?
Galeano –
O importante é que em toda a América do Sul, ou em quase toda, há uma energia popular de mudança, que se expressa de diversas maneiras, porque afortunadamente a América Latina é um vasto reino da diversidade.

ZH – Ao citar Marx no livro, o senhor relembra o Manifesto Comunista e diz que “o capitalismo é um bruxo incapaz de controlar as forças que desata”. Com que cara o capitalismo sairá dessa crise?
Galeano –
Vivemos a confirmação de que o mundo está com as pernas para o ar. Se recompensa a falta de escrúpulos e se castiga o trabalho. Banqueiros e especuladores receberam a maior esmola de toda a história da humanidade. Somando as ajudas de Estados Unidos e Europa, os fundos públicos presentearam US$ 3 trilhões aos responsáveis por essa trapaça. Todos pagamos o pato pelos erros de alguns. Mas o capitalismo tem mais de sete vidas, é um sistema astuto, muito sabido, capaz de cobrar entrada a cada um de seus funerais.

ZH – O senhor já aplicou dinheiro em bolsas de valores?
Galeano –
Não. Estou na posição de aplicador em ouro. Dos muelas (dos dentes molares).

ZH – O cientista político brasileiro Emir Sader diz que o senhor é o mais subversivo dos seres humanos. Como é possível ser subversivo por tanto tempo e em tantos livros?
Galeano –
Coisas do Emir. Eu sou bonzinho, um cara inofensivo. Subversivo, eu? Bem comportado, sempre respeitando a luz vermelha. Sou, isso sim, incompreendido.

ZH – E a sua relação de amor com Cuba como está?
Galeano –
Continua. Mas também é bastante incompreendida. Porque minha consciência continua acima de qualquer dever de obediência. Continuo acreditando que a onipotência do Estado não é a melhor resposta à onipotência do mercado e ainda pratico aquele conselho de Fonseca Amador, o fundador do sandinismo na Nicarágua: “Amigo, amigo verdadeiro, é quem elogia pelas costas e critica pela frente”.

ZH – Sem Fidel, Cuba continuará sendo o que é?
Galeano –
Tomara que sim, nas conquistas essenciais da revolução cubana: a dignidade e a solidariedade. Dignidade insólita num pequeno país antes preparado para a humilhação, e solidariedade não menos insólita, que apesar da sua pobreza semeia médicos por todo o mundo.

ZH – Encontrou-se com Fidel depois que ele adoeceu?
Galeano –
Não.

ZH – Como vê o governo Lula?
Galeano –
Não vou vender gelo aos esquimós. Não opino sobre o Brasil numa entrevista para o Brasil.

ZH – O que se pode esperar de Barack Obama?
Galeano –
Agora, ele entra na Casa Branca, que será a sua casa. Tomara que não esqueça que a Casa Branca foi construída por escravos negros. Chegou a hora de os Estados Unidos se libertarem da sua pesada herança racista. Há pouco tempo, em 1943, o Pentágono proibiu transfusões de sangue de doadores negros, como se tal diferença existisse, para evitar que acontecesse por injeção a mistura de raças proibida na cama.

ZH – Vamos falar de futebol? O Uruguai vai à Copa?
Galeano –
Não sei. Os uruguaios estamos condenados a sofrer. Até o último minuto, não saberemos se vamos ou não vamos. Quando era criança, aprendi na Igreja que sofrer é bom, porque sofrendo se chega ao céu. Que assim seja. Se não chegarmos à Copa, pelo menos chegaremos ao céu.

ZH – Quando escreve sobre a vitória de 2 a 1 do Uruguai sobre o Brasil, na Copa do Mundo de 50, o senhor diz: “Na noite anterior, ninguém conseguia dormir. Na manhã seguinte, ninguém queria acordar”. O Brasil sofre até hoje aquela derrota. Os uruguaios ainda saboreiam aquela Copa?
Galeano –
Ainda. E isso nos fez prisioneiros da nostalgia. Não é ruim, mas é preferível ter esperança. Se recordar é bom, viver é melhor. Eu me recordo sobretudo do que aconteceu depois do jogo. Obdulio Varela, o capitão, o motor daquela vitória impossível, passou a noite, de bar em bar, abraçado aos vencidos, bebendo com eles e dizendo: “Como pude fazer-lhes esta maldade”. Ele via os jogadores sofrendo, e eram todos anjos. Umas horas antes, eram uma besta de mais de 200 mil caras ferozes. Vistos um a um, a situação mudava. Ele me contou, e ele não mentia.

ZH – O futebol está mais feio?
Galeano –
O futebol profissional sacrifica, inevitavelmente, a beleza e a fantasia em todos os altares do êxito. Se joga pelo dever de ganhar e não pelo prazer de jogar. Isso é normal num sistema mundial de poder em que o que não é rentável não deve existir, e o fracasso é o único pecado que não tem redenção.

ZH – Quem é o craque do futebol mundial hoje?
Galeano –
Dos que vi, Peledona foi o melhor.

ZH – Dizem em Porto Alegre que aqui o senhor é especialmente admirado pelas mulheres, que já leram muito mais os seus livros do que os homens. Este é um fenômeno gaúcho?
Galeano –
Gracias. Não sabia. Transmitirei essa boa notícia à UMC (União Mundial dos Carecas).

ZH – Há um lugar em especial em Porto Alegre que queira rever?
Galeano –
As pessoas. As cidades não existem. Existem as pessoas que nelas respiram e que por elas caminham. Não me apego a edifícios. As pessoas, essas me fazem falta.

ZH – Recentemente, o senhor se interrogou se este mundo é um destino. E também se indagou: será que ele não está grávido de outro? Que outro mundo este mundo ainda pode parir?
Galeano –
O mundo que o mundo quis ser quando todavia não era: uma casa de todos.

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