Implacável

O jornalista Mario Sergio Conti é devastador na Folha hoje sobre Carlos Heitor Cony. Li o artigo ‘Um herói cínico e hipócrita’ alertado por meu amigo Nilson Mariano.
Vai desagradar os que tentaram camuflar a imagem de Cony em relação à sua obra, como se assim protegessem sua memória de alguns constrangimentos. Não há como camuflar. Cony foi ficcionista, mas antes foi jornalista e morreu como jornalista. É uma separação impossível entre um e outro.
Grandes autores devem ser lembrados não só pelas misérias dos seus personagens, mas também por suas próprias misérias.

Este é o artigo:

Um herói cínico e hipócrita

Por Mario Sergio Conti

O herói de “Pessach: A Travessia”, o romance de Carlos Heitor Cony de 1967, é um narrador astuto. Reptiliano, Paulo Simões avisa logo de cara: “Os outros têm razão: sou um hipócrita ou um cínico, talvez as duas coisas juntas”.

Na frase seguinte, porém, insinua que os outros se enganam: “Só a mim mesmo essa cara não tapeia. Também, olho-me pouco no espelho, o necessário para a barba: não gosto de estranhos”. Superior à sociedade, Simões desdenha de sua aparência cínica e hipócrita.

O próprio narrador pode estar errado, contudo: só se olha no espelho para fazer a barba, e vê um estranho. Em ordem unida, suas frases rufam como tambores de parada. O ratimbum do Ego onisciente soa unívoco e evidente, mas, visto de perto, é dúbio, furtivo, furta-cor.

“Pessach”, a Páscoa judaica, celebra a libertação do povo eleito do cativeiro e a travessia do Mar Morto. Como título, é uma metáfora forçada: Simões não é judeu e o povo inexiste. Sua travessia é pessoal. Ele supera a hipocrisia e o cinismo e se acha ao empunhar um fuzil contra a ditadura.

Foi uma travessia típica. Em 1967 saíram também “Terra em Transe”, de Glauber Rocha, que termina com Paulo Martins de submetralhadora em riste, e “Quarup”, de Antonio Callado, no qual padre Fernando adere à guerrilha. O filme é genial; o romance, um cálido documento de época.

Já “Pessach” se esbalda em sensacionalismo sádico. Um guerrilheiro, cujo pênis fora carbonizado na tortura com um maçarico, açoita um subordinado negro (abrutalhado e bêbado, portanto) e faz com que estupre uma virgem. Os personagens falam mais de bidês que de luta de classes.

O romance serve de alegoria para a intelectualidade –premida que estava entre a traição do PCB, a cartada suicida da luta armada, a inócua assinatura de manifestos, o desbunde ou a melancolia estéril. Simões nem cogita em aderir à nova ordem.

“Pessach” serve, ainda, para pensar os laços entre Cony e Simões. No lançamento do livro, sua primeira frase era: “Hoje faço quarenta anos”. Não houve mudança na reedição, de 1975.

Em 1997, na terceira edição, ela foi alterada para: “Hoje, 14 de março de 1966, faço quarenta anos.” Cony nasceu em 14 de março. Em 1966, fez quarenta anos. Ou seja, Simões é seu alter ego.

É equivocado identificar o autor, pessoa real, com o narrador do romance, personagem fictício. Em “Pessach”, tal identificação foi buscada ao longo dos anos. A mudança foi política. Nas primeiras edições, a ditadura dominava. Em 1997, Fernando Henrique cumpria o seu primeiro mandado presidencial.

A identificação Simões-Cony não faz com que “Pessach” deixe de ser ficção. Mas dá um sentido subjetivo à seguinte afirmação do narrador-autor: “Não quero morrer de velhice ou de moléstia… Antes que a vida me insulte, insultarei a vida: me engajo numa luta… Talvez consiga ser herói”.

Cony era um herói de verdade. Cronista alheio à política, a partir de abril de 1964 passou a vergastar com altivez a violência militar. Foi mais lúcido e corajoso que Simões. Fez isso sozinho e pagou caro: demissão, afastamento do Brasil, uma dúzia de processos.

Cerca de dois anos depois de “Pessach”, desistiu de ser herói. Virou o alter ego de Adolpho Bloch, que o contratou para exaltar o regime. E, meses após relançar o romance, não teve pejo em entrevistar na “Manchete” Sérgio Fleury, ponta de lança dos torturadores. Era chamado de Conyvente.

Com Lula no Planalto, o herói fantasmagórico abocanhou uma bolsa-ditadura. Cony pediu indenização e quis uma pensão mensal. Em valores de hoje, a indenização foi de R$ 2,8 milhões; a pensão, de R$ 37,6 mil.

O herói morreu de velhice e moléstia. Não foi insultado pela vida, mas pelas escolhas que fez ao longo dela. Seus artigos de 1964 são um cálido documento de época. “Pessach”, uma ruína sobre hipocrisia e cinismo.

 

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