MAFALDA E LYA

Um breve depoimento muito pessoal sobre Lya Luft, que morreu hoje em casa aos 83 anos.

No final dos anos 90, decidi que iria fazer um perfil de Mafalda Verissimo para Zero Hora, para tentar contar alguma coisa que Erico não tivesse contado no Solo de Clarineta.

Entrevistei pelo menos 20 pessoas ao vivo e por telefone, entre as quais Tônia Carrero, Eva Sopher, José Lewgoy, Henrique Bertaso (o filho).

A personagem principal não queria falar comigo de jeito nenhum. Não importava, porque os relatos quase me colocavam ao lado de Clarice Lispector, Lewgoy e dos amigos que ela fazia rir com sua inteligência sempre afiada.

Mas Mafalda adoeceu e o projeto foi adiado. Arquivei as entrevistas e esperei por uma nova chance.

Em 2002, com Mafalda recuperada, atualizei alguma coisa e escrevi e publiquei o texto, mesmo sem ter conversado com a matriarca dos Verissimo.

Quando o perfil saiu, em seis páginas do caderno Donna, Mafalda me ligou e pediu desculpas. Havia gostado do texto. E explicou: não queria falar comigo porque achou que eu estaria preparando seu obituário.

Escrevo sobre essa história agora porque o perfil de Mafalda, escrito a partir apenas de depoimentos de amigos e da família, só saiu por causa do roteiro e das fontes indicadas por Lya.

Era grande amiga dos Verissimo, desde a juventude. Naquele 2002, quando a entrevistei em casa, ela estava preparando um livro sobre memórias da infância e eu consegui e publiquei um trecho na Zero.

Parecia não esperar muito mais da literatura, como se tivesse feito tudo o que pretendia. O livro sobre a Lya criança, sem muitas pretensões, seria um presente muito mais a ela mesma do que aos leitores.

Não era bem assim. Um ano depois, Lya iria estourar em todo o Brasil com o best-seller Perdas e Ganhos.

Morreu uma grande escritora e tradutora. Não quero e não vou falar de questões políticas.

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Compartilho abaixo o texto que Luis Augusto Fischer publicou na Folha sobre Lya Luft:

FOLHA DE S. PAULO

Lya Luft não narrou luta do feminismo, mas expôs condição da mulher

Livros da escritora, com narrativas abismais e linguagem fluente, refletem trajetória de intelectual inquieta

Luís Augusto Fischer

Não foi apenas uma reviravolta, mas várias. Na trajetória de Lya Luft, que morreu nesta quinta-feira (30), é possível enumerar um conjunto impressionante de transformações. Nascida em família germânica, em Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul, uma das cidades mais marcadas pela presença alemã no país, teve como primeira língua o alemão. Numa época em que a definição religiosa era relevante e quase inamovível, Lya converteu-se do luteranismo ao catolicismo.

Aluna de letras, apaixonou-se por um professor também germânico, mas religioso, o irmão marista Arnulfo, que por esse amor abandonou o hábito e retomou seu nome de batismo, Celso Pedro Luft.

Era um talentoso professor e pesquisador, que com os anos se converteria num dos maiores nomes dos estudos de gramática no Brasil, estrela de uma geração que transitava do antigo paradigma da filologia para o novo mundo da linguística, ao lado de Antônio Houaiss e Evanildo Bechara.

Lya transformou-se em professora universitária em faculdade de Porto Alegre, onde vivia, enquanto criava seus três filhos com Luft. Era cronista e poeta, conectada ao mundo das impressões sensíveis, mas relativamente anódinas.

Escreveu e publicou também contos. Praticou igualmente a tradução, do alemão e do inglês (entre os autores estavam Virginia Woolf, Thomas Mann e Doris Lessing) ao português. Até que publicou um romance, “As Parceiras”.

Era 1980, outro momento do feminismo, quando essa luta era muito menos disseminada e, em alguns sentidos, mais ousada. O enredo punha em questão uma série de fantasmas da condição feminina do tempo, que ganhavam enunciação concentrada, sombria, até mesmo cruel.

Não havia no texto nem autopiedade, nem ataques à posição — ou ao que hoje se trata como a opressão — masculina. Era uma narrativa abismal, em linguagem fluente mas atravessada por figuras e cenas metafóricas, de vez em quando alegórica.

Lya ganhava outra recepção, em outra proporção. Não levantava na ficção a bandeira feminista, como nunca parece mesmo ter levantado, mas sua ficção dali por diante sempre carregou um centro nervoso ligado a temas decisivos para a condição feminina, ainda que não exclusivos dela, como a sucessão das gerações e os estigmas da mulher, ao lado de uma certa ideia de transcendência em relação às contingências imediatas da vida — uma perspectiva metafísica, para dizer de modo simples.

Talvez se possa dizer, olhando em retrospecto o conjunto de sua trajetória, que de “As Parceiras” em diante Lya explicitou esses temas ou esses dilemas para nunca mais perdê-los de vista, e ao mesmo tempo mostrou que, em alguma medida, estavam presentes já, em forma amena e dispersa, na poeta e cronista anterior.

As ficções que se seguiram davam passos adiante na mesma direção, em narrativas longas e também curtas. Talvez o rodrigueano “Reunião de Família” seja o ponto alto dessa fase.

Em suas cada vez mais frequentes aparições na imprensa, em falas públicas e entrevistas, Lya ia expondo suas ideias e definindo suas parcerias. Sua afinidade com o conterrâneo gaúcho Caio Fernando Abreu, por exemplo, por um lado estendia um inesperado gesto de simpatia pela geração hippie, e por outro tirava o “maldito” do lugar.

Tudo então estava reconfigurado em sua vida, mas um novo abismo se abriu quando ela se separou de Luft para viver com Hélio Pellegrino.
Figura de proa na vida intelectual brasileira, referência na luta contra a ditadura, mineiro que vivia no Rio de Janeiro, Pellegrino foi fundador do PT e liderou toda uma discussão sobre o papel da psicanálise na vida brasileira, na redemocratização.

Não é que o ex-marido fosse de direita, mas era um acadêmico, por assim dizer, ausente do debate político imediato. Lya virou outra ou já estava nesse lugar antes? Desde sempre?

Lya e Hélio viveram juntos até a morte dele. Alguns anos depois, ela retornou a Porto Alegre para voltar a viver com o primeiro marido, até a morte deste.

É certo que essas mudanças, inclusive geográficas, abriram novos horizontes. A obra de Lya abriu-se para retomar a poesia, a crônica, o conto. Seu maior sucesso, “Perdas e Ganhos”, de 2003, é uma espécie de mescla desses registros — o livro vendeu quase 1 milhão de cópias e passou 113 semanas no topo das listas de mais vendidos do país.

Ela foi traduzida para outras línguas, enquanto peregrinava em feiras e festivais de literatura, onde palestrava com grande desenvoltura, nunca renegando nenhuma passagem de sua vida, mas, ao contrário, acolhendo essas vivências como marca consistente.

No começo dos anos 2000 passou a assinar coluna na revista Veja, naquele momento a mais importante semanal brasileira, na qual consta ter sido a primeira mulher titular de espaço.

Virou best-seller, mantendo os temas e questões de antes e abordando também questões da atualidade política e social, mas agora sendo lida por muito mais gente e produzindo textos de menor força do que aqueles dos anos 1980 e 1990.

Teve um terceiro e definitivo casamento, enterrou tragicamente um de seus filhos, continuou produzindo ficção, crônica, poesia, ensaio.
Em textos desse período recente, expôs uma visão política conservadora. Escreveu muitas reminiscências pessoais, muitas delas ligadas a sua infância, em que despontam a figura do pai, advogado e grande leitor, e uma menina Lya sempre inquieta, curiosa, desejosa de coisas indizíveis que, creio, ela alcançou viver.

Luís Augusto Fischer é professor de literatura na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autor, entre outros livros, de “Literatura Brasileira – Modos de Usar” (L&PM) e “Duas Formações, Uma História” (Arquipélago). Lançará no próximo ano um estudo que descreve o processo de consagração do modernismo paulista, pela Todavia.

3 thoughts on “MAFALDA E LYA

  1. Esta não foi a culta senhora que disse : na falta de algo melhor votei no bolsonaro ?
    É a única lembrança que tenho dela. Esta frase resume sua obra .

  2. eU nUnca Li a lIteratura dela, então não posso julgar. Na época, LIa o espaço dela na veja e achava chato, o texto muito gorduroso e bem reacionário. A impressão que me dava é qUe se EspRemessem o texto dela, não daria um suco. Sem informações sÓ adjetivos e metáforas despropositadas. Talvez eu não entendia, era bem mais jovem… aí depois, esse ódio a lula e esse apoio a bolsonaro. Como me interessar de ler uma pessoa aparentemente tão ObTusa? Depois que ela morre, leo textos e mais textos De pessoas sérias afirmando que ela era, na verdade, complexa, aberta, Sábia e culta. Deve ser verdade, mas da época de veja pra cá não dava pra perceber. É mais fácil, até por respeito, num texto de despedida, escrever “Quanto as questões políticas, não vou falar”. A questão PAra mim é o que essas opções revelam sobre ela? Por Que essas opções? Eu não consigo entender. Realmente é complexo. Moisés falOu no texto lá do natal sobre a reunião com a família e deixar de lado essas diferenças… algo assim, não lembro as palavras exatas. Para mim, é a mesma questão. Se eu pudesse entender, seria bem mais fácil deixar pra lá e dizer “sobre isso me abstenho de falar”.

  3. É a velha questão da separação entre autor e obra. Tem personalidades que tiveram o seu momento de inspiração, e produziram textos, ou o que for, de interesse, mas que, em suas vidas pessoais, não acrescentam nada. É o mal de considerarmos essas pessoas comuns, que nos surpreendem em um ou outro lapso inspirado, como “guias”, gurus culturais, faróis, etc. Não são nada disso, são seres que se equivocam – às vezes, de maneira grotesca, como essa senhora, ao votar no Bolsonaro -, constantemente, como nós (nesse caso, até mais do que nós).

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