MORO FUNES, O DESMEMORIOSO

Tudo o que deveria ser lembrado e muito do que não merecia lembrança alguma estavam na memória de Funes, o Memorioso. O Irineo Funes de Jorge Luis Borges é um dos personagens mais fantásticos da literatura.

E o juiz Sergio Moro talvez seja desde já uma das figuras mais literárias da Justiça brasileira. Moro é um patético Funes ao contrário. Não se lembra de nada.

Funes se recordava do formato das nuvens num determinado dia, das dobras da página de um livro, dos cachos de uva de uma parreira, dos desenhos que apareciam nas ondas de um rio. Era capaz de reconstituir todos os sonhos que havia sonhado.

Funes fazia citações em latim. Moro também faz, como fez hoje no depoimento na Comissão de Constituição e Justiça do Senado. Se é que têm mais alguma coisa em comum, essa pode ser a coisa: para Funes e para Moro a memória é às vezes apenas uma lata de lixo.

Funes dizia que juntava memória como quem junta porcarias e que aquilo o atormentava, porque tantas lembranças não faziam sentido. Moro quer se livrar das porcarias que pode ter juntado.

Livrou-se de um sistema inconfiável de mensagens, o agora controverso Telegram, livrou-se das mensagens que armazenava e do celular que poderia ter as mensagens.

Memórias que poderiam ser incômodas foram descartadas por Moro, e ele garante que tudo aconteceu de forma involuntária.

Na condição de juiz, Moro fazia, entre outras coisas, o que a Justiça ainda chama de oitiva, aqueles depoimentos em que um réu é inquirido a falar e falar sobre detalhes do que é acusado, para que em algum momento esclareça o rumo do que está sob julgamento ou caia em contradição.

Moro fez isso com Lula. O ex-juiz foi treinado para correr atrás de respostas para perguntas embaraçosas. Com quem o senhor falou, quando, a que horas, o que ele disse, o que o senhor respondeu? Quando o senhor viu Leo Pinheiro, em que circunstâncias, sobre o que conversaram, por quanto tempo?

Um juiz pode, se quiser, fazer perguntas que considera objetivas sobre um dia decisivo para que se lance luz sobre um processo, se estava chuvoso, se fazia sol. Esses detalhes podem ajudar a revelar o que ainda não foi desvendado.

Pois Sergio Moro, o juiz que aciona a memória dos outros para tirar conclusões e decretar sentenças, não se lembra de nada da vida recente dele.

Moro disse aos senadores que não sabe se as mensagens divulgadas pelo Intercep com as conversas escabrosas dele com Dallagnol são verdadeiras.

Não são quaisquer conversas. Mas ele não sabe ao certo se disse que não deveriam melindrar Fernando Henrique, se Fux era de fato um juiz confiável, se deu ordens para que Dallagnol descartasse delações, se orientou os procuradores a buscar provas contra Lula.

Sergio Moro é o antiFunes da Justiça, o juiz sem memória, o ex-magistrado que usa ao depor tudo o que não desejava que fizessem nas oitivas que comandava. Moro não sabe nada do que é relevante. Só trata de conceitos vagos, de sua autoimagem grandiloquente e de futilidades.

Mas Sergio Moro sabe que o não dito pode também ser revelador de verdades encobertas, em qualquer atividade, numa conversa informal, num desentendimento, num depoimento.

O que Moro não disse no Senado, ao não se esforçar para ativar sua memória, pode ter sido o que acabou dizendo de mais importante. Os esquecimentos do ex-juiz o conduziram, internamente, às lembranças que ele não quer ter.

Moro, o Desmemorioso, pode se lembrar do formato das nuvens no dia em que inquiriu Lula. Mas sabe do que não deve se lembrar das conversas com Dallagnol. Nós também sabemos.

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