O ESPANADOR

Levei um susto existencialista ontem à tarde. Entrei numa papelaria da zona sul de Porto Alegre e fiquei diante da imagem de uma moça que se equilibrava sobre um banquinho. A moça passava um espanador nas prateleiras.
Há anos, talvez décadas, que eu não via um espanador. Nem parado, largado sobre uma mesa. E eu vi um espanador na mão de uma moça que espanava os objetos com uma leveza como se espanasse sem pressa o mundo sujo dos Trumps e seus amigos.
O espanador me devolveu à realidade. Um lugar em que ainda existem espanadores não pode ter perdido o sentido. Podem existir Bolsonaros, Araujos, Damares, Veléz-Rodriguez, mas ainda existe o espanador.
Aquela cena me embeveceu (esta também é uma palavra do tempo do espanador) e eu me senti entregue ao devaneio por alguns instantes.
Não era nostalgia, era a tentativa de reafirmação do presente, de algo que me diga que nem tudo está desarrumado.
Um rapaz veio me atender e perguntou: e o senhor, deseja o quê?
Eu disse: agora, desejo apenas olhar um pouco a cena do espanador.
Ele foi gentil e me deixou à vontade. Fiquei por uns minutos olhando, porque aquele quadro, como se fosse uma pintura realista em animação, me distensionava e me afastava do celular.
As pessoas que entravam na loja passavam por onde a moça estava, mas sem se dar conta do que viam.
Voltei a falar com o moço e pedi quatro metros de papel pardo. Enquanto ele dobrava o papel com cuidado em forma de canudo, me dei conta de que também aquilo, também o papel pardo pode e vai sobreviver.

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