O falante agente infiltrado e a juíza calada e constrangida
Se fosse a cena de uma série da Netflix, o vídeo do depoimento do empresário e ex-deputado Tony Garcia à juíza Gabriela Hardt, mostrado pelo Brasil 247, seria considerado improvável.
É um momento devastador para a imagem do Judiciário, sem a necessidade de informações complementares que tentem explicá-lo.
Temos na cena uma inversão de posturas. Um bandido esperto, assertivo e inquieto, e uma juíza cautelosa, às vezes vacilante, aparentemente tímida e certamente desconfortável diante daquele sujeito disposto a fazer revelações.
O vídeo tem 45 minutos. A fala ininterrupta de Garcia sobre a sua missão de infiltrado na Lava-Jato ocupa 20 minutos e tem um desfecho surpreendente. Foi gravada no dia 24 de março de 2021.
Gabriela Hardt começa indecisa sobre o encaminhamento da audiência. Não se dá conta de que o sujeito de barba, na tela, que vai depor pelo sistema remoto, é Tony Garcia.
Chega a rir da gafe de que poderia estar se preparando para ouvir um sujeito que não aparecia diante dela.
Sorri de novo quando se refere a ele como Tony Garcia, dizendo que chamá-lo assim “fica engraçado”. É socorrida pelo depoente, que também ri e se apresenta: Antonio Celso Garcia.
Quando o homem pede à juíza para contar como era sua relação com os justiceiros de Curitiba, ela recomenda que seja sucinto, porque aquilo não parece fazer parte do objetivo da audiência. E aí começa a delação.
Foram 20 minutos de fala acelerada, porque não havia como ser mais sucinto.
E o infiltrado contou o que agora todo mundo já sabe. Era o agente da Lava-Jato para vigiar, grampear, tentar negociar, atrair para arapucas e dedurar investigados por Deltan Dallagnol e Sergio Moro.
Dedicou-se a essa tarefa durante dois anos e meio, como colaborador, por envolvimento em crimes financeiros investigados desde 2004.
Falou sem ser interrompido, até fazer uma pausa e declarar-se à disposição para maiores esclarecimentos.
Foi quando a juíza voltou a falar e formulou uma pergunta para que ele esclarecesse se era investidor e não proprietário da corretora Eldorado.
O infiltrado havia dado detalhes do trabalho ilegal a mando do lavajatismo, citado todos os procuradores com os quais se relacionava, listado as tarefas, lembrado datas e denunciado Moro como seu chefe.
E a juíza formulou então a primeira pergunta, porque antes o sujeito havia falado por conta, sem nenhum questionamento.
Como se ele não tivesse contado nada de relevante, a magistrada retomou o interrogatório do infiltrado que tinha a confiança da Lava-Jato, que contava com uma estrutura de suporte ao que deveria fazer e que era elogiado pela fidelidade aos pretensos caçadores de corruptos.
O infiltrado falou durante 20 minutos, como se relatasse um filme em que Moro e Dallagnol eram os mocinhos e ele era um agente vigiando gângsteres. E a juíza quieta.
O resto já se sabe. O vídeo da audiência foi engavetado por Gabriela, até ser descoberto e enviado pelo juiz Eduardo Appio ao Supremo e divulgado agora pelo jornalista Joaquim de Carvalho no 247.
Por que foi engavetado? Por que, depois de ouvir o relato de um bandido por 20 minutos, a juíza ficou impassível, como se estivesse desconcertada, e retomou a conversa completamente alheia ao que havia ouvido?
“Eu tenho uma faca no meu pescoço”, disse Tony Garcia à interrogadora, acrescentando que falava para que Gabriela Hardt pudesse “formar opinião”.
“São fatos graves que vou narrar para a senhora”, alertou o delator. Só agora, dois anos depois, ficamos sabendo da gravidade do relato e do que a juíza já sabia desde aquela audiência de 24 de março de 2021. Por que Gabriela Hardt não fez nada?
Ela fez a única coisa que podia como juiza da república de curitiba: engavetou o vídeo e enterrou a investigação. Qualquer outra coisa que fizesse certamente faria mal a ela e aos amigos, então agiu com honestidade, a mesma honestidade que existe entre bandidos.