Os desastres que mobilizam até negacionistas
O governo espanhol enfrenta um desafio inusitado. Autoridades se mobilizam para organizar e até conter a romaria caótica de socorristas voluntários de outras regiões em direção às áreas das cheias que já mataram mais de 200 pessoas.
O excesso de gente nas estradas e nas cidades atrapalha o socorro de equipes treinadas para isso. Não são técnicos, é gente comum, inclusive de países vizinhos, com pás, vassouras, baldes, cordas.
E aí se apresenta de novo aquela pergunta singela, banal e aparentemente sem sentido: por que o sentimento do coletivo ainda se manifesta nas urgências, se foi desprezado e fragilizado quando de decisões políticas e cotidianas em que prevalece o individualismo, a competição, o interesse particular?
Por que o sentimento nessas horas é o de que as pessoas são salvas muito mais por outras pessoas do que pelo Estado? Como aconteceu no Rio Grande do Sul, onde espalharam que até o véio da Havan teria socorrido mais gente em seus helicópteros do que os militares treinados para salvar gente e bichos.
Uma abordagem simplificadora informa que o véio da Havan foi apresentado como herói como parte da estratégia do bolsonarismo de exaltar os seus e depreciar o setor público e o ‘sistema’.
Os helicópteros dos homens fardados seriam de Lula e deveriam ser diminuídos. Assim como espalharam pelas redes sociais que surfistas brancos de classe média, com imagem vinculada à direita, teriam resgatado o cavalo Caramelo que subiu no telhado. O cavalo foi resgatado por bombeiros e veterinários, por servidores públicos.
Mas esses dois exemplos não explicam tudo, mesmo que se saiba da ação organizada do bolsonarismo para capitalizar e lucrar com a propaganda do socorro aos desabrigados e ao mesmo tempo atingir Lula.
São incompletas as abordagens sobre os impulsos de gestos grandiosos de benemerência e filantropia, que muitas vezes aplacam falhas pessoais até sob o ponto de vista moral. Na base do eu sou reaça e individualista, mas na hora que precisam eu ajudo os outros.
Há muita coisa além do desejo de aparecer bem montado no jet ski no Jornal Nacional. A mobilização que impulsiona as pessoas para a emergência do socorro e dá sentido a uma rede coletiva poderia ser melhor estudada no contexto político e social da gritaria antissistema, anti-instituições, anti-Lula e antitudo.
É nesse cenário que avança a pregação de que os esforços pessoais são o que importam. Foi a mensagem da ação e da prosperidade individual que consagrou políticos de direita e extrema direita eleitos em outubro. Foi o que quase levou Pablo Marçal ao segundo turno em São Paulo.
Em 2022, o desprezo pelo interesse coletivo quase reelegeu Bolsonaro, que negou vacina e solidariedade na pandemia, estava negando até auxílio financeiro e debochou das mortes por Covid. E mesmo assim continuou com grande apoio popular. E era uma emergência.
Dirão que não há como comparar o nosso caso com o da Espanha, mas não é disso que se trata. Estamos apenas observando que a teologia do salve-se quem puder, que prospera em toda parte, inclusive na Europa, é o que contribui para a sabotagem dos direitos e das demandas coletivas das maiorias. As virtudes do egoísmo teriam finalmente vencido?
Adeptos da teologia da prosperidade votaram nos deputados que rejeitaram na Câmara a taxação de fortunas. Pobres votaram nos que vão contrariar seus interesses de pobres e defender os ricos. Sempre foi assim? Mas tanto quanto agora?
Gente que socorre quem nem conhece, nas emergências climáticas, nega vacinas aos próprios filhos, nega a ciência e nega que a crise do clima provocada por nós mesmos é que mata no Rio Grande do Sul e na Espanha.
É gente que vota nos gestores das cidades invadidas pelas águas por omissões e gestão precária, como aconteceu com a reeleição do prefeito Sebastião Melo (MDB) em Porto Alegre. Melo venceu em todas as zonas eleitorais, com o apoio maciço de moradores de áreas alagadas.
Solidariedade genuína, altruísmo, heroísmo e benemerência oportunista, tudo se mistura nas incoerências expostas nessas horas. O mundo do individualismo é também o que acolhe gestos de heroísmo público, televisionado e selfiado, porque não são coisas conflitantes e talvez sejam afins e complementares. O heroísmo que assume feições coletivas aparentes é muitas vezes primo do individualismo.
Essas mesmas pessoas das vassouras e dos baldes seriam mobilizadas para salvar o mundo, se convocadas hoje em campanha mundial liderada por Ailton Krenak e Greta Thunberg, e não só para fazer faxina de emergência na Terra que todos nós destruímos todos os dias? Parece conversa de autoajuda?
É a conversa que parte da esquerda se nega a fazer, porque envolve afetos, emoção, sentimentos, subjetividade, coisas com as quais a direita vem lidando muito bem. E as esquerdas? As esquerdas continuam achando que só irão sobreviver se forem extremamente racionais.
Duvida que nao me deixou dormir. Nossos abobados da
Enchente serao melhores
Que os espanhois?
Por que aqui eles se superaram.