OS PECADOS POLÍTICOS DE ‘DOIS PAPAS’

‘Dois papas’ seria um filme médio, se tratasse de dois idosos anônimos que buscam a remissão confessando-se mutuamente sobre pecados de tempos idos. Mas o filme é sobre duas celebridades da Igreja e por isso acaba sendo um fracasso pela sua desconexão com a verdade.

Pois vi o filme, depois dizer que me negaria a aceitar como natural uma história distorcida sobre figuras reais e edificantes. Decidi ver por insistência de amigos. O que vou escrever aqui, e vou escrever muito, pode incomodar quem já viu e quem ainda pretende ver o filme de Fernando Meirelles.

Aprendemos que não se brinca impunemente com personagens reais e vivos, mesmo que a arte, qualquer arte, permita devaneios sobre a realidade ou não seria arte.

O filme não parece propor um espelho de opostos, ao colocar um diante do outro, mas está clara a intenção de tratar os dois papas como protagonistas do mesmo tamanho.

Nenhum deles está ali para fazer escada para o outro, ou o filme não existiria. A intenção está no título original e no título traduzido: dois papas.

Mas o Joseph Aloisius Ratzinger de Meirelles é uma figura quase fictícia, apenas escorada num personagem real.

Não interessa se metade das cenas não reflete a realidade. O que importa é que Meirelles expõe os dramas de Jorge Mario Bergoglio e esconde os dramas ainda mais terríveis de Ratzinger.

Nas sequências que sustentam a ideia do filme, Meirelles comete o grande desastre. É quando o argentino fala dos seus erros ao tentar proteger os colegas jesuítas do terror da ditadura argentina e, na sequência, o alemão confessa suas omissões diante das denúncias de pedofilia na Igreja.

Não há contraponto possível na abordagem escolhida por Meirelles e que o diretor pode jogar no colo do roteirista. O argentino fica exposto como um líder religioso que fraqueja politicamente diante dos ditadores. O alemão, logo depois, confessa que também foi fraco com os pedófilos. E diz apenas isso, o que não é pouco, mas não é tudo.

Os dilemas de Bergoglio são mostrados em imagens, com sequências fortes, lembranças pessoais, personagens reais. A confissão de Ratzinger é balbuciada, sem nada que sustente a dimensão trágica da sua fala, apenas com a citação de um nome de um dos principais acusados de pedofilia.

O drama do argentino é dolorosamente político e humano, enfileirando os algozes e suas vítimas. O drama de Ratzinger é resumido a uma chaga religiosa. Não há personagens no drama do alemão.

As vítimas dos padres pedófilos são hoje adultos e já foram representadas em outros filmes. E os seus parentes? E as suas histórias? E as articulações de Ratzinger para proteger os acusados?

Meirelles não quis ou não conseguiu tomar a decisão que transformaria o filme médio num filmaço. Não contrapôs, no momento das confissões, os dramas dos papas com a dimensão que têm.

Logo depois de mostrar o aniquilamento de Bergoglio com a desastrada intervenção que desagradara os jesuítas perseguidos, e a sua imediata tentativa de redenção (inclusive lendo livros escritos por brasileiros), Meirelles era obrigado a fazer o óbvio: a confissão de Ratzinger também deveria ter força política, em voz alta, como a que o alemão ouvira do argentino.

Bergoglio disse: eu tentei proteger meus irmãos e admito que devo ter errado, enquanto eles lutavam com radicalidade para afrontar os ditadores.

Ratzinger deveria dizer, para que fosse além da confissão sobre o acobertamento dos horrores da pedofilia: eu, muito antes de proteger pedófilos, na condição de alta autoridade da Igreja, persegui e reprimi meus irmãos que lutaram contra as ditaduras e por um catolicismo menos reacionário.

Ratzinger deveria ter dito, para ser o contraponto à altura de Bergoglio, que muitos dos livros que o argentino lia, quando tentava se livrar das culpas e entender a luta dos ‘radicais’, foram escritos por católicos progressistas que ele odiava e que ajudou a massacrar, entre os quais frei Leonardo Boff.

Mas não. Meirelles prefere dar à confissão de Ratzinger o tom religioso dos que falam em voz baixa, como se os pecados do então papa devessem ser tratados com cuidado, como os crimes que a igreja do alemão tentou camuflar. Meirelles ajuda Ratzinger a simular sua remissão, que fica abafada e incompleta.

E isso é importante, podem perguntar? É a essência do filme, ou deveria ser. Bergoglio confessa e transcende, consegue passar o sentimento de que está em dia com a sua consciência e com o seu Deus. Ratzinger, o guardião dos dogmas da Igreja, não tem essa chance. Meirelles o compromete ao tentar protegê-lo.

Meirelles pode ter contado a história possível. Ratzinger é um velhinho que, por tudo que fez pela Igreja, acaba sendo perdoado. Mas tudo o que ele fez não aparece no filme, e nem vamos falar de sua juventude hitlerista.

É paradoxal também que Ratzinger tenha a compreensão e a admiração pela trajetória de Bergoglio, se o que fez durante toda a vida no Vaticano foi conspirar contra a Igreja progressista que acaba por conquistar o argentino.

O Ratzinger denso, mas sempre bondoso, é interpretado por um Anthony Hopkins contido, e Meirelles acredita que por isso ficou doce demais, porque a figura de Hopkins o suavizou (o diretor não deve ter esquecido que Hopkins já foi Hannibal Lecter). O Bergoglio de Jonathan Pryce é latino, argentino, italiano, um Francisco real e poderoso.

Se ‘Dois papas’ não fosse um filme, mas uma reportagem, Meirelles teria contribuído para a disseminação de uma das mais danosas fake news sobre duas personalidades da igreja católica.

O filme emociona, mas isso não basta. Como trata de pessoas reais e vivas, ‘Dois papas’ presta um péssimo serviço à História. Um dia talvez Meirelles tenha a chance da remissão que insinua conceder, mas não concede, a Joseph Ratzinger.

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