PARA O CHICO, COM OU SEM AÇÚCAR

Promete ir longe, mesmo que já cansado, o debate sobre a música ‘Com açúcar, com afeto’, agora meio que desviado da controvérsia se Chico poderia ou não parar de cantar uma canção que é dele, ou se a música é mesmo machista.

Há conversas pelas beiradas. Perguntam se as mulheres teriam o direito de pedir que ele parasse de cantar e se os homens teriam o direito de se meter na posição das mulheres que o aplaudem porque parou.

A direita se diverte com os debates das esquerdas e com rachas que passam não mais só por feminismo e machismo, mas por identitarismo percebido ou sugerido ou imaginado.

Quase tudo agora vai para a caixinha das questões identitárias. É como se qualquer debate hoje fosse acionado por um robô pândego para dividir as esquerdas em seus muitos compartimentos, enquanto o fascismo avança.

Esse é o tipo de dilema que não incomoda a direita, muito menos a extrema direita. A extrema direita não tem grupos identitários, tem facções criminosas.

De qualquer forma, é inevitável que se debata a decisão de Chico. Quem diz e escreve que não é para tanto já está debatendo, mesmo que assuma esse ar blasé de Sergio Moro sendo entrevistado pelo Kim Kataguiri.

Ser blasé e esnobar os debates que os outros puxaram antes é menos um truque e mais uma fraqueza de quem chegou atrasado. Sempre foi assim, mas agora, nesse mundo das redes, ficou pior.

O sujeito blasé não quer ver e nem falar de filmes e séries que muitos já viram, porque o que ele disser, com o seu esforço e talento pela originalidade, outros já terão dito muito antes.

O atrasado perde a primazia de propor uma abordagem pretensamente nova. Por isso o blasé tenta esculhambar com rodas de conversa.

E a esquerda de ação acha que a controvérsia em torno da música do Chico tem também muito da falta de treino para o debate mais consequente. Por exemplo: como derrubar Bolsonaro? Por que a classe média desistiu das ruas?

Só não dá para querer interditar discordâncias. É legal esse estágio da questão do Chico em que a pergunta mais frequente é: por que as mulheres não poderiam pedir para que ele deixe de cantar uma música que hoje causa incômodos que não causou muitas décadas atrás?

O que está presente aqui é que, inclusive nesse tipo de conversa, decisões e posições são tomadas de acordo com o tempo vivido, as circunstâncias, a memória afetiva, política e cultural e os limites de cada um em relação a eventuais constrangimentos, desconfortos ou preconceitos. Parece simples.

Pelo que andei lendo, a maioria das mulheres acha que a música não ultrapassa limite algum porque não é ofensiva ou depreciativa, até porque tem uma data bem marcada. Mas Chico não deve estar preocupado com maiorias.

A música tem a poesia de Chico, tem delicadeza e tem valor como arte até hoje. Não é Waldick Soriano cantando eu não sou cachorro, não. Peraí, mas censurar Waldick e não censurar Chico não é preconceito?

Se houvesse um resumo forçado, talvez esse condensasse o que prevalece no debate até agora: a música de Chico não desrespeita a mulher e deve ser preservada como arte e cantada, mas muitas outras, de outros autores, poderiam, sim, ser desprezadas hoje. Só que a decisão de Chico está tomada.

Arreda-se aquela conversa fiada do ‘não podemos relativizar, companheirada’. Podemos, sim. A todo momento relativizamos alguma coisa. Dependendo da ideia, do objeto e do autor em debate, quase tudo que se expressa pela arte é relativizado.

Relativiza-se porque as rimas são de Chico, porque a origem da música tem uma história bonita envolvendo Nara Leão e porque até a submissão cantada ali é relativa.

Ah, mas deveria então valer para todos e em todas as áreas. Não, não deveria. Se valesse, essa barulheira não teria existido. 

Mas o artista pode se considerar para sempre o dono absoluto da sua arte e fazer dela o que bem entende, inclusive destruí-la?

Aí já é outro debate antigo. Esse pode ficar para maio, depois do primeiro Carnaval de outono.

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