Perguntas sobre Cuba

Publiquei este texto em 27 de agosto de 2000 em Zero Hora. Me atrevo a republicá-lo, como curiosidade, porque me parece que as interrogações são praticamente as mesmas, 16 anos depois, no momento em que Fidel sai de cena.

O MUNDO SEM FIDEL E SEM A CUBA COMUNISTA

Quem participa de reuniões de cúpula diz que nada disso será preciso quando Fidel Castro morrer. Sem Fidel, os convescotes das cúpulas estariam entregues à chatice dos Blair, dos Schroeder, da turma da Terceira Via, esse arroz empapado enfeitado com passas, que se requentou antes de sair da panela.
Fidel diverte, elogia todo mundo e usa o mesmo truque nos discursos. Aos vinte minutos, anuncia que já está terminando. Quando param de rir, ele já falou por mais uma hora. O que será das cúpulas sem o comandante que desafia manuais e tempos cronometrados? A Cuba comunista imita Fidel, engana a plateia e espicha sua sobrevida, mesmo que a cada 20 minutos alguém anuncie que a ilha vai acabar, porque está escrito no cerimonial.
Se os cenaristas, videntes com doutorado, tivessem reputação, os cubanos teriam acabado com a de todos eles. O economista brasileiro Wilson Cano está pedindo respostas para a mesma interrogação que se renova. Até onde irá a coesão social de Cuba, que aprendeu a socializar suas migalhas, agora que é ameaçada pela emergência da nova classe de trabalhadores dolarizados?
Cano escreveu Soberania e Política Econômica na América Latina (Unesp, 582 páginas), uma análise da crise na região. Cuba ficou no fim do livro, como a esfinge. O balanço, desde antes da revolução de 1959, é essencialmente econômico e ajuda a montar a pergunta que excita torcedores pró e contra o Cuba FC.
A ilha é um milagre que deveria ter acabado junto com o muro, em 1989. Entre 1989 e 1993, a economia encolheu 35%, o comércio externo, 75%, os salários perderam 75% do valor. Os cubanos repartiam o que havia sobrado de comida, luz, sabonete, gasolina, pasta de dente.
Os países do Leste consumiam 83% das exportações de Cuba, e só a União Soviética ficava com 70%. O fim do mundo comunista deixou Fidel sem subsídios e sem compradores e expôs a incompetência do centralismo e da burocracia para preparar o país para o desenlace.
Fidel começa então a abrir a economia a investimentos externos e a desestatizar a produção. Em 1992, acaba com o monopólio público do comércio exterior. A Constituição, que proibia a propriedade privada, abre exceção para a propriedade mista (privada e do Estado).
Em 1993, permite a “posse de divisas” (dólares) pela população e até a abertura de contas em moeda norte-americana. O trabalho por conta própria, com preços liberados, e as cooperativas são estimulados.
Em 1995, Fidel cria o Ministério para o Investimento Estrangeiro, e a economia é aberta inclusive a bancos, deixando de fora apenas a área militar, saúde e educação. A abertura atraiu mais de 350 grupos.
Os dólares do turismo e os enviados pelos cubanos que fugiram para Miami fazem com que 70% da população tenha acesso à moeda norte-americana e aos mercados paralelos de alimentos, roupas, bens duráveis. O resto só tem pesos e se submete ao racionamento dos armazéns subsidiados das libretas.
Esta é a interrogação de Wilson Cano, um economista de esquerda: o que será do socialismo, que pode estar gerando na própria recuperação as desigualdades do capitalismo?
Fidel, agora engravatado e amigo de João Paulo II, virou mago do empreendedorismo? Fidel é o ditador que Fujimori, Stroessner, Pinochet, Yeltsin, Médici e alguns democratas gostariam de ter sido quando crescessem.
Estariam livres dos dissidentes, expostos como os mafiosos da Flórida, e teriam gente com dentes bonitos, crianças na escola, SUS que funciona, medalhas na Olimpíada e a cúmplice vitalidade daqueles velhinhos músicos do filme Buena Vista Social Club, de Wim Wenders.
O povo cubano seria um resignado que se realimenta do civismo contra o embargo americano e assim suporta a ditadura? Isso explica os milagres de uma ilha primitiva? O que será do mundo sem os discursos de Fidel? O que será de socialistas, anticomunistas, gremistas e colorados sem a Cuba com a cara que tem hoje?

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