QUEM ACENDE A LUZ?

A crise de democracia ganhou ontem, no debate entre Kamala Harris e Mike Pence, a imagem que faltava: o cenário, a iluminação, as placas de acrílico, as roupas dos debatedores e da mediadora.

O esforço pela ‘neutralidade’ do ambiente mergulhou todos na escuridão. A democracia pede socorro e um pouco de ar e de luz.

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A POETA
Sou do tempo em que chamavam as mulheres de poetisa.
O Nobel para uma poeta, numa hora dessas, é bom demais. Precisamos conhecer Louise Glück.

O tradutor e escritor André Caramuru Aubert traduziu poemas de Louise para a Folha.

Abaixo, um desses poemas. É uma amostra da escritora que ainda não foi publicada no Brasil.

Antes da tempestade
Chuva amanhã, mas hoje à noite o céu está claro, as estrelas brilham.
Ainda assim, a chuva está chegando,
talvez o bastante para submergir as sementes.
Tem um vento do mar empurrando as nuvens;
ntes que você as veja, você sente o vento.
Melhor dar uma olhada nos campos,
ver como eles são antes que alaguem.
Uma lua cheia. Ontem, uma ovelha fugiu para a floresta,
e não uma ovelha qualquer — o reprodutor, todo o futuro.
Se nós voltarmos a vê-lo, veremos seus ossos.
O capim se agita de leve; talvez o vento tenha passado por ele.
E as novas folhas das oliveiras se agitam da mesma maneira.
Camundongos nos campos. Onde as raposas caçam,
amanhã haverá sangue no capim.
Mas a tempestade — a tempestade lavará tudo.
Em uma das janelas está um menino, sentado.
Mandaram-no para a cama — cedo demais,
em sua opinião. Então ele se senta na janela —
Está tudo em ordem agora.
Onde você está agora é onde você irá dormir, onde acordará de manhã.
As montanhas firmes como um farol, para lembrar a noite de que a Terra existe,
que ela não deve ser esquecida.
Sobre o mar, as nuvens se formam conforme o vento aperta,
dispersando-as, dando a elas um propósito.
Amanhã a aurora não virá.
O céu não voltará a ser o céu de hoje; ele prosseguirá como a noite,
exceto pelas estrelas que vão se dissolver e sumir quando a tempestade chegar,
durando quem sabe umas dez horas.
Mas o mundo como ele era não vai voltar.
Uma a uma, as luzes das casas da cidade se apagam
e as montanhas brilham na escuridão refletindo luz.
Nenhum som. Apenas gatos se enroscando na entrada.
Eles farejam o vento: tempo de fazer mais gatos.
Mais tarde, eles vagarão pelas ruas, mas o cheiro do vento os espreita.
É o mesmo nos campos, atrapalhados pelo cheiro de sangue,
ainda que por ora apenas o vento desperte; estrelas deixam o campo prateado.
Estamos longe do mar e mesmo assim reconhecemos os sinais.
A noite é um livro aberto.
Mas o mundo para além da noite permanece um mistério.

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