Saquearam o caminhão das rapaduras

eu

Uma história do tempo antigo, da minha infância, do tempo desta foto, que decido contar agora com o bom pretexto da véspera do Dia da Criança.
Não, não é sobre a soma que aparece no cenário de papel que simulava uma biblioteca e que poderia, desde aquela época, explicar as acusações que sofro hoje de que sou petralha desde criança.
É que li ontem que dezenas de moradores do Complexo do Chapadão, na zona norte do Rio, se engalfinharam saqueando a carga de carne de um caminhão que havia sido furtado. Se a carne era roubada, que se roubasse do ladrão.
Não sei em que circunstâncias a carne foi parar no chão, a reportagem não conta. Mas o que importa é que foi saqueada.
Lembrei então que, na época em que fiz pose para essa foto clássica, no Grupo Escolar Alexandre Lisboa, do Alegrete, eu tinha uns sete ou oito anos, lá por volta de 1960.
Um dia cheguei ao colégio e quase todos na rua e no pátio se lambuzavam com rapaduras. Eu logo também ganhei de um amigo uma rapadura. E continuavam chegando crianças da minha idade, com no máximo 10 anos, com rapaduras enfiadas no bolso do tapa-pó.
Um caminhão com rapaduras havia tombado na Rua das Tropas, perto da escola. Foi saqueado. Quem vinha daquele lado, trazia rapaduras. Lembro que narravam que havia rapadura espalhada por todo lado. Eu comi a rapadura saqueada.
Mas eu queria que um dia alguém me explicasse o que significava o saque de um caminhão de rapaduras por um grupo de crianças, lá em meados do século 20, e um saque de caminhão de carne por adultos hoje.
O sentimento de que, se a carga estava tombada e talvez desperdiçada, não tinha mais dono seria o mesmo de hoje? Com que variações, com quais entonações?
Não me lembro de ter percebido esse dilema circulando pelo colégio. O que sei é que comi rapadura saqueada. Mas tenho a impressão, apenas a impressão, de que naquela época até os saqueadores infantis eram mais românticos e inocentes do que os infratores de hoje.
Olho a minha foto agora e ainda penso que não participei da pilhagem, e sinto como se fosse hoje o gosto daquela rapadura. Eram tempos parecidos com o de hoje, quando a direita começava a se apoderar de novo do país.
Mas eles, sim, nos saqueiam quando bem entendem.

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