UM HOSPITAL PODE SE NEGAR A SALVAR UMA CRIANÇA?

O Ministério Público terá de esclarecer por que o Hospital Universitário Cassiano Antonio Moraes (Hucam), da Universidade Federal do Espírito Santo, não acolheu a menina de 10 anos que deveria ter a gravidez interrompida.

Por que a menina, a avó dela e uma assistente social tiveram de deixar o hospital no domingo, depois que esse se negou a realizar a intervenção autorizada pela Justiça?

A menina foi levada para um hospital de Pernambuco, porque o Hucam entende que a gravidez era de mais de 22 semanas de gestação e ali eles não fazem abortos depois desse período.

O hospital foi escolhido para o procedimento porque é referência na capital do Estado onde a família mora. Mas o Hucam ofereceu à avó da menina esse argumento ‘técnico’ para se negar a atendê-la.

O Hucam talvez possa dizer ainda (mas ainda não disse oficialmente) que não é obrigado a realizar o aborto.

Pode argumentar que a família da menina tem autorização para que a gravidez seja interrompida. Mas que a autorização não obriga o hospital a nada.

Mas será que o hospital vai dizer isso mesmo, considerando-se que nenhuma lei impede aborto nesses casos? Um hospital público pode se negar a acolher e salvar uma criança grávida sob risco de vida?

Um hospital mantido por uma universidade federal pode dizer a uma avó que a neta não será socorrida?

Um hospital que funciona como escola pode cometer mais essa violência contra uma criança sob tortura desde os seis anos, quando começou a ser abusada pelo tio?

Vamos levantar a hipótese de que o hospital que se acovardou tenha o direito de se negar a fazer o aborto, sob o argumento de que respeita algum protocolo interno.

E vamos supor que outros hospitais utilizassem o mesmo argumento e que a menina passasse a perambular pelo Brasil com a avó e a assistente social, porque cada hospital tem a sua explicação.

A situação da criança grávida é mais uma crueldade da era bolsonarista. O hospital da universidade teve medo de enfrentar a fúria dos pregadores do Deus de Bolsonaro?

Aos 10 anos, a criança enfrenta as consequências do desamparo (a mãe morreu e o pai está preso), da violência do tio estuprador, da indiferença de um hospital público e do cerco de fundamentalistas religiosos. Mas tem essa avó que irá salvá-la.

Compartilho abaixo uma reportagem de Dhiego Maia, da Folha, que dá a medida exata da sequência de crueldades e de violências enfrentadas pela menina.

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FOLHA DE S.PAULO

Menina que engravidou após estupro teve que sair do Espírito Santo para fazer aborto legal

DHIEGO MAIA

A menina capixaba de dez anos de idade que engravidou após ter sido estuprada e teve o aborto autorizado pela Justiça precisou sair de seu estado porque o hospital procurado por ela em Vitória se negou a fazer o procedimento legal com urgência.

Acompanhada da avó e de uma assistente social do governo capixaba, a garota saiu de Vitória neste domingo (16) e seguiu para um complexo hospitalar do Recife (PE), onde iniciou os procedimentos para interromper a gestação indesejada.

A violência contra a menina de São Mateus, cidade a 218 km de Vitória, ganhou repercussão nacional. Ela foi abusada sexualmente por quatro anos pelo marido de uma tia. O homem, de 33 anos, foi indiciado pelos crimes de ameaça e estupro de vulnerável e está foragido desde que o caso veio à tona.

A viagem, realizada em um avião comercial, deveria ter ocorrido de forma sigilosa, mas foi divulgada nas redes sociais de conservadores. A bolsonarista Sara Winter chegou a publicar o nome da vítima, contrariando o que preconiza o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente).

A chegada da menina causou protestos pró e contra o aborto em frente ao hospital do Recife na tarde deste domingo. Grupos cristãos fizeram rodas de oração, e médicos do hospital foram chamados de “assassinos”. O tumulto só terminou após intervenção da Polícia Militar.

A Folha apurou que a menina esteve no Hucam (Hospital Universitário Cassiano Antonio Moraes), vinculado à Universidade Federal do Espírito Santo após o juiz Antonio Moreira Fernandes, da Vara da Infância e da Juventude de São Mateus, conceder o direito ao aborto na última sexta-feira (14).

No seu despacho, o magistrado reproduziu o desespero da garota quando era atendida por uma assistente social. Ao ser informada pela profissional que estava grávida, a menina “entra em profundo sofrimento, grita, chora e afirma não querer levar a gravidez adiante”, escreve o juiz.

Fernandes disse que respeitou a vontade da menina amparado também por manifestação em favor do aborto defendida pelo Ministério Público do Espírito Santo.

No hospital escolhido, a menina passou por exames. A equipe médica detectou que ela estava com 22 semanas e quatro dias de gestação –um período considerado avançado, mas sem nenhum impedimento clínico ou legal.

O hospital não iniciou os procedimentos para a indução do aborto e simplesmente pediu que a criança retornasse nesta semana para uma nova reavaliação, mas ela desenvolveu diabetes gestacional e corre risco de morrer. Se seguir grávida, pode contrair outras complicações clínicas, como pressão alta e fissuras no útero, que colocarão sua vida ainda mais em risco.

O Hucam foi questionado pela Folha sobre a postergação do atendimento dado à criança, mas o hospital não se manifestou. A unidade também deve ser questionada na Justiça, porque é suspeita de vazar informações do prontuário médico da menina.

A Corregedoria do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) também abriu investigação para apurar se a Justiça do Espírito Santo resguardou os direitos da criança durante a condução do processo.

Especialistas em direito afirmam que não há um período limite para se fazer um aborto autorizado pela Justiça. Ainda mais, quando a mulher corre risco de morrer.

No Brasil, a Justiça não pune três tipos de aborto: por estupro, quando o feto é anencéfalo (sem cérebro) e quando a mãe corre risco de morrer. O caso da menina se enquadra em dois desses fatores.

“O que vemos no caso dessa menina é que o hospital pode ter optado por uma prática comum de violência, que é a postergação da gravidez para conseguir salvar o feto. Não se pensou na menina”, diz a advogada Sandra Lia Bazzo Barwinski.

Barwinski coordena no Brasil o Cladem (Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher, entidade que vem denunciando em todo o mundo esse tipo de prática clínica. “Gravidez e maternidade forçadas se equivalem à tortura”, diz a especialista.

Quando procurou pela primeira vez um hospital ainda em São Mateus, no dia 7 deste mês, a menina estava com 21 semanas de gestação, diz Barwinski. “Esse caso começou errado desde o início. A menina deveria ter sido atendida lá mesmo em São Mateus. Qualquer ginecologista e obstetra estão preparados para fazer esse tipo de procedimento.”

Mas a menina, assim que foi liberada do hospital, seguiu para um abrigo de crianças vulneráveis em Vitória.

Segundo a ginecologista Helena Paro, professora da Faculdade de Medicina da UFU (Universidade Federal de Uberlândia), a literatura médica já mostrou que a indução do aborto na idade gestacional em que a menina se encontra é quatro vezes mais segura do que o parto vaginal.

A menina começou os procedimentos de aborto ainda neste domingo mesmo no Cisam (Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros), hospital referência no atendimento à saúde da mulher.

A Folha não conseguiu apurar se o procedimento foi concluído. Segundo Paro, o aborto pode durar até 24h ou mais dependendo do estado clínico da paciente e dos efeitos da medicação utilizada.

Antes da violência sexual à que foi submetida, a menina já tinha sofrido a morte precoce da mãe e ausência do pai, que está preso.

3 thoughts on “UM HOSPITAL PODE SE NEGAR A SALVAR UMA CRIANÇA?

  1. Vergonhosa a posição deste Hospital Público do Espírito Santo e ainda por cima Hospital Escola. A falta total de ética também exposta. Desculpas mais do que esfarrapadas. Atitude mais do que covarde.

  2. E quem Irá Acompanhar e respaldar dignamente a Vida Desta Criança, depois De anos SOBREvivendo a Tanta Violência psicológica, física e Sexual? Que espécie de Equilíbrio a Sociedade Espera Que tenha Uma Pessoa que vem sendo Agredida De inúmeras Formas para levar adiante Sua infância e Seus Estudos?

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