UMA CARTA PARA GLÓRIA MARIA

Glória Maria está levando bronca. Em entrevista a Joyce Pascovich no Instagram, a jornalista da Globo disse:

“Eu acho tudo isso um saco. Hoje tudo é racismo, preconceito e assédio. A equipe com que trabalho me chama de ‘neguinha’, de uma forma amorosa e carinhosa. Estou mais de 40 anos na televisão, já fui paquerada, mas nunca me senti assediada moralmente. O assédio é algo que te fere, é grosseiro, desmoraliza. Existe uma cultura hoje que nada pode. Tem que ter uma diferenciação, não dá para generalizar tudo. O politicamente correto é um porre. Acredito que o politicamente correto é o caráter, a honestidade. Esse mundo que a gente está vem muito da amargura das pessoas, não aceito”.

Compartilho abaixo um das broncas, o texto de Caroline Sodré (foto), historiadora especializada em relações étnicos-raciais, publicado na coluna Quadro-Negro, de Dodô Azevedo, na Folha.

É fundamental, sim, racializar pautas e vivências

Caroline Sodré

Direto ao ponto. A fala de uma senhora negra como a sua, Glória Maria, que “hoje tudo é racismo, preconceito e assédio”, na prática uma crítica aos pensamentos da nova geração preta acadêmica, confirma e ilustra a forma com que o racismo se estrutura no nosso país.

O preconceito e o assédio estão em todos os lugares e tomam formas diversas. Reproduzir o discurso hegemônico que contradiz fatos é, além de anti-jornalismo, dar razão à estrutura que nos faz acreditar, como mulheres negras, que para chegarmos em lugares de poder, precisamos incorporar o discurso imposto pela própria estrutura.

Nessa estrutura, mulher negra, consciente e racializada não consegue espaços. Somos menos de 4% em cargos de liderança dentro de empresas no Brasil. Tudo o que o sistema de poder precisa são de pessoas como a senhora reproduzindo essas falas.

Sabe as falácias “os africanos escravizavam eles mesmos”, ou “quem libertou os negros foi a Princesa Isabel”? Pois bem, são narrativas históricas que se tornaram hegemônicas, justamente por conta de negros que, pensando como a senhora, servem como justificativa retórica aos defensores do atraso. Quando Sérgio Camargo, presidente da Fundação Palmares, diz que o movimento negro de “escória maldita”, e a senhora diz que “tudo hoje é racismo”, se expressam, e têm o direito de se expressar. Mas não ajudam.

Quando não conseguimos enxergar além de nossas vivências, estamos mais uma vez provando que descolonizar nossos olhares não é uma tarefa simples. Segundo Bell Hooks: “A integração racial, em um contexto social em que os sistemas de supremacia branca estão intactos, solapa os espaços marginais de resistência ao divulgar a premissa de que a igualdade social pode ser obtida sem mudanças de atitudes culturais em relação à negritude e às pessoas” (HOOKS, bell. Olhares negros, pag. 47, 2014). Ou seja, é preciso compreender toda a complexidade da narrativa hegemônica brasileira, para entender que nossos olhares são treinados a acreditar nas estruturas brancas.

Eu sei, não é tarefa fácil. Como consequência de uma atitude deliberada de nossa sociedade, 87% dos analfabetos funcionais do país são pretos. Como descolonizar olhares se tudo o que nos mostram reproduz a colônia em sua essência? Como aquilombar pensamentos se não temos acesso? E quando temos, nos tornamos parte do ambiente para poder sobreviver.

Talvez, Glória, há quase 50 anos, quando a senhora entrou para a TV Globo, ainda existisse resistência em seus pensamentos. Talvez, ser a única mulher negra no jornalismo por anos tenha feito o apelido “neguinha” se ressignificar como algo positivo. E isso é legítimo. Sua vivência é única e incrível, assim como seu trabalho e sua trajetória, mas isso não quer dizer que a luta racial, aqui, fora da bolha da elite, seja algo “chato”.

Antes, ser a única negra na equipe era “aceitável”. Agora não acreditamos mais nisso. Lutamos hoje para que essa pauta não seja “chata” para os que estão por vir. Na verdade, lutamos para que essa nem seja uma pauta no futuro. Lutamos para não termos que expor nossas dores a fim de lembrar aos privilegiados, os seus espaços privilégio. Lutamos para termos outras Glórias Marias no topo.

Não precisamos concordar. Mas fico triste em pensar que nossas reivindicações chegaram até a senhora de forma distorcida, isso é mais um sinal de que temos que aprender democratizar sempre mais nosso discurso. Por outro lado, acho ótimo fazer parte de uma geração que pelo menos tenta ressignificar os símbolos de poder. De chatice em chatice, tentamos contar uma outra história, a partir das perspectivas que nos fizeram acreditar que eram marginais.

4 thoughts on “UMA CARTA PARA GLÓRIA MARIA

  1. Excelente! A historiadora (estudiosa , além da vivência) , ou seja, conhecimento e consciência, expressa sua analise brilhantemente.
    Obrigada!

  2. muito boa a resposta da historiadora, espero que leve a glória Maria a refletir. não posso deixar de dizer, é lamentável o nível intelectual da jornalista, visão curta e engessada.
    boa moisés Mendes, não dÁ pra deixar passar.

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