Abrão Slavutzky e o mal

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A “banalidade do mal” é banal

ABRÃO SLAVUTZKY
Psicanalista

O mal atravessa a história da condição humana. Nunca foi fácil entender, e menos ainda aceitar, a maldade da humanidade. A pergunta que sempre volta é: Por que o homem, em certas condições, despoja o semelhante, humilha, fere, martiriza e assassina? O Dilúvio na Bíblia teve como objetivo eliminar o mal da Terra. O Senhor envia o Dilúvio para matar os malvados e fracassa na sua tentativa. Resignado, aceita a maldade como um desígnio do homem na sua intimidade, como está escrito no Gênesis.

O mal é o principal eixo da reflexão filosófica na obra de Hanna Arendt. Ela aborda o mal na perspectiva ético-política e não na visão moral ou religiosa. Escreveu “Origens do Totalitarismo” em 1950 e passou a ser estudada pela direita civilizada, o centro e a esquerda. Já foi tema de filmes, biografias, ensaios e doutorados. Entretanto, Arendt propôs no seu livro mais polêmico, “Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal”, esse subtítulo desconcertante. Arendt escreveu assim no epílogo, sobre Eichmann: “Ele, simplesmente, nunca percebeu o que estava fazendo”. Surpreendente, pois Adolf Eichmann ingressou no Partido Nazista e na SS em 1932, e no ano seguinte foi nomeado chefe do departamento responsável pelas questões judaicas. Passou a ser o maior especialista do Reich quanto aos judeus. A partir da Conferência de Wannsee, dia 20 de janeiro de 1942, começa a Solução Final, ou seja, a eliminação sistemática de todos os judeus da Europa. Eichmann e o seu pessoal ficaram responsáveis pela deportação dos judeus para os campos de extermínio. No seu julgamento teve uma centena de testemunhas de acusação dos sobreviventes dos campos, entre os quais o escritor Primo Levi, escrevendo e falando sobre a maldade de Eichmann.

No epílogo do seu livro, Arendt escreveu para justificar a expressão banalidade do mal: “Eichmann não era nenhum Iago, nenhum Macbeth… Ele não era burro. Foi pura irreflexão que o predispôs a se tornar um dos grandes criminosos dessa época”. Aqui se refere a dois personagens famosos de Shakespeare, símbolos do mal, Iago e Macbeth, mas não percebeu que Eichmann atuou como um ator em todo o julgamento. Revelou-se frio, objetivo, indiferente, honesto funcionário nazista. Talvez o erro de Arendt tenha sido sua tentativa de psicologizar Eichmann, e aí foi superficial ao assegurar que ele não tinha ódio aos judeus, que não percebeu o que estava fazendo.
Sobre o mal, convém lembrar o filósofo Immanuel Kant com o “mal radical”. Entende o mal como uma realidade universal, como uma propensão inata, porque não pode ser extirpada da natureza humana. Sigmund Freud após a Primeira Guerra Mundial, segue uma linha semelhante ao destacar na pulsão de morte sua dimensão destrutiva. Em seu “Mal-estar na cultura”, escreveu que os seres humanos, quando se desmascaram, são bestas selvagens que nem sequer respeitam os membros de sua espécie. Sustenta, por fim, a presença simultânea da agressão e da destruição não erótica como originária do ser humano.

O mundo passa por uma fase em que o mal está presente nas democracias. Há uma onda do mal como há muito não se via, com discursos que estimulam o ódio. Estar diante do mal, da destrutividade e da crueldade humana é sempre difícil. São tempos de exaltação do ódio como um bem. São tempos em que a parte mais poderosa do Brasil parece pensar como as bruxas de “Macbeth” de Shakespeare: “O Bem, o Mal, é tudo igual”. É então que a falsa ética de preocupação com o mal da corrupção desaparece. Já a desigualdade social segue crescendo e fazendo vítimas. Por tudo isso, admiro os que resistem ao fogo, à crueldade do mundo. São os que sustentam o humanismo dizendo não à devastação. Constroem assim a resistência à crueldade do mundo, fortalecem os fios de esperança dando à vida o gosto da dignidade.

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