Abrão Slavutzky escreve sobre memória, morte e resistência

Os insubstituíveis
Abrão Slavutzky
Psicanalista

Desde criança escuto dizer que ninguém é insubstituível. Ora, se ninguém é insubstituível, é verdade também que ninguém é substituível. São duas verdades opostas, não se excluem, é um paradoxo. Os insubstituíveis geram marcas mnêmicas, marcas na memória, cujos efeitos aparecem nas identificações em cada pessoa. Aqui e ali se percebe o pai, a mãe, educadores e amores. São nos sonhos que os visitantes noturnos, os mortos, dão o ar de suas graças.
Um pouco de cada um se vai ao morrer um amor. Quem parte leva uma história compartida. Há como um pedaço da gente que se vai com o morto, um erotismo do luto, que pode enriquecer ou empobrecer a vida. Empobrece na melancolia, quando o apego amortece a vida de quem não pode se separar. Já o desapego permite, através do tempo, enriquecer quem pode transformar sua dor em criatividade.
Elias Canetti escreveu em “Sobre a morte”, que devemos ser contra a morte e jamais esquecê-la. Elias perdeu o pai com sete anos e conviveu com esse peso sobre o qual se aliviou escrevendo. Seu livro mais famoso, “Poder e Massa”, tem como objetivo entender como agem as massas pois viveu durante as duas guerras mundiais. Antes dele Sigmund Freud escreveu sobre a Psicologia das Massas e análise do EU. A questão da massa e sua idealização, sua manipulação faz hoje parte da Política.
Aprendi cedo o dever da memória com o passado do Povo Judeu. Como brasileiro aprendi tardiamente o genocídio dos índios, a crueldade contra os negros na escravidão e agora o racismo atual. Por tudo isso, creio que a Psicanálise não deveria ser neutra, indiferente às devastações de toda ordem que sofre o mundo. Investigar, debater, conectar as questões psi com o social.
O país fez uma campanha sistemática para ocultar o genocídio índio. “Entradas” e “Bandeiras” aprendi como se fossem a cavalaria norte-americana nos filmes que vinham para salvar os brancos. Então li “Enterrem o meu coração na curva do rio”, de Dee Brown, e fiquei envergonhado por ter batido os pés de alegria no chão do cinema.
Os invisíveis mais sofridos, são os que desapareceram nas ditaduras militares. Centenas de jovens cujos familiares sofreram a impossibilidade de realizar um ritual funerário. Aliás, esse é o centro da tragédia “Antígona”, de Sófocles, no qual Antígona desafia a decisão do rei Creonte que proíbe o enterro de Polinice, seu irmão. As Forças Armadas da América do Sul sequestraram, torturaram e mataram, desaparecendo os corpos.
As histórias dos desaparecidos vêm sendo contadas como no livro “K”, de Bernardo Kucinski. É uma narrativa sobre a busca de um pai pela sua filha Ana (irmã de Bernardo). “Tudo nesse livro é invenção, mas quase tudo aconteceu”, escreveu o autor. Minha irmã Bluma conheceu Ana quando ela era adolescente. Foi num Movimento Judaico sionista socialista e contou que era uma jovem inteligente e simpática.
Ana graduou-se em Química, fez doutorado em Filosofia e foi professora de Química da USP. Desapareceu no dia 22 de abril de 1974, depois de sair do trabalho na universidade. Um infiltrado da polícia na organização político-militar ALN contou que o casal era militante. A USP expulsou Ana por “abandono de função” em 1975. Em abril de 2014, graças à Comissão da Verdade, a demissão foi anulada por unanimidade. Atualmente, há uma escultura com uma placa em homenagem a Ana Rosa Kucinski nos jardins do Instituto de Química.
O Brasil, hoje, aparece na comunidade internacional como o país da impunidade e da crueldade. Os que detêm o poder apregoaram a morte, elogiaram a tortura, e são livres até para queimar a Floresta Amazônica em busca de minérios. Creio que entre os insubstituíveis da História do Brasil estaria o governador Leonel de Moura Brizola. Recordo que se exilou no Uruguai, mas nunca fugiu da luta pelos interesses do povo. Vale a pena revê-lo no filme “Legalidade”.

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