As velas do Mucuripe

Publiquei este texto sobre Belchior no FaceBook, na segunda-feira. Como o blog estava fora do ar, publico aqui, mesmo que com atraso.

AS VELAS DO MUCURIPE

Ainda sobre Belchior. Eu, ao contrário de muita gente, gosto da distração das comparações. Ontem, muitos disseram que não há como comparar Belchior e Chico.

Eu apenas disse que Belchior é o maior poeta da música brasileira. Escrevi sob a emoção da notícia de sua morte. Desisti do que escrevi? Não. Mantenho hoje o que disse ontem. É uma frase.

Mas vamos então a uma comparação básica, só como diversão de um feriado. Saio perguntando: Chico tem uma música definidora de geração que possa ser tocada daqui a alguns anos com vigor e com o sentido de perenidade?

Acho que nem as músicas de resistência à ditadura de Chico passam permanência em momentos como o que vivemos. Diga uma que os jovens cantam ainda hoje.

Belchior produziu os poemas musicados dos dilemas da sua-nossa geração, do desterro dentro do país, da sensação de se estar fora do lugar, do atavismo interiorano deslocado nas cidades, da fuga (do querer ainda hoje ir para o útero de Portugal?), do voltar, do perder-se na volta e de não saber o que fazer com reencontros, desilusões e desatinos.

Grandes artistas, na música, na literatura, nas artes plásticas deixam pegadas fortes de geração no que fazem. São mais do que cronistas ou observadores de uma época ou de episódios, são os caras que tatuam almas de um tempo na arte que fazem.

Belchior foi um deles. Escondeu-se e foi morrer em Santa Cruz do Sul. Por que Santa Cruz? Por que se voltou para os chãos de um interiorzão em busca de acolhida para o final da vida em que não sabia direito a quem pertencia depois de se extraviar da sua Sobral?

Belchior é o Brasil sempre provisório que parece não nos pertencer, que não pertence à minha geração e nem aos jovens de hoje. Já Chico é a classe média carioca enraizada, politizada, lírica, mas às vezes cartesiana, da poesia cerebral que emociona, mas cerebral.

Chico foi único desafiando os militares e é gênio cantando amores e desamores, mas Belchior é, pra mim, mais amplo, mais frondoso do que ele.

Belchior é Pessoa, Caetano, Raul, Torquato Neto, Van Gogh. Poucos artistas brasileiros têm o poder intuitivo de ainda hoje sintetizar o que fomos e ainda somos quanto Belchior. Mas não se gosta de um Belchior só para descartar um Chico.

Que os jovens que já o descobriram e com ele se identificam escutem Belchior ainda mais para estender pedaços da poesia da aflição no caminho que têm a percorrer como desterrados pelo avanço do reacionarismo da direita na política, no Judiciário e em todas as instituições.

Eles e todos nós, os desorientados pelo golpe de agosto, continuamos precisando da arte e da alma de Belchior.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Website Protected by Spam Master


3 + 2 =