O lenço palestino

Ando sem pressa pelo centro de Porto Alegre, por onde gosto de caminhar, e decido comprar um lenço palestino, aquele consagrado por Yasser Arafat.

Paro na frente de uma loja de varejo, dessas que vendem de tudo, na Rua dos Andradas. Pergunto a um vendedor que está na porta:

– Tem lenço palestino?

– Ali na prateleira – o rapaz indica com a mão para uma área logo na entrada da loja.

Dou uma olhada, não encontro nada e uma vendedora vem me ajudar. Diz que tem os lenços que estou vendo, mas não tem lenço palestino.

Uma senhora aparece de repente, ao lado da vendedora, e se dirige a mim:

– Não existe lenço palestino.

– Existe – eu respondo.

Ela passa a ser assertiva:

– Existe lenço árabe, que todos usam, inclusive em Israel.

Eu retruquei:

– Não vou discordar de que muitos usam, mas eu prefiro chamar de lenço palestino.

A mulher de uns 50 anos, que não tinha uniforme da loja, ficou aguardando que eu aprofundasse meus argumentos, mas desisti.

– Não quero controvérsias, moça. Só quero um lenço.

E fui embora com a sensação de que poderia ter sido cercado por gente gritando ‘não há lenço palestino, seu antissemita’, mas ao mesmo tempo pensando se não deveria ter resistido um pouco mais. Mas pra quê?

O que aconteceria se eu tivesse falado a palavra Arafat? Era um conflito presencial, não era virtual, não se tratava apenas de uma desavença de internet.

Fui personagem de um conflito analógico em espaço público. Ela sabia o que eu procurava e eu sabia por que ela havia se intrometido na conversa, saindo não sei de onde.

Eu só queria um keffiyeh, o lenço que Arafat usava como símbolo da luta dos palestinos.

Mas que vinha de muito antes, desde o enfrentamento do domínio inglês, no começo do século 20, como símbolo de resistência.

A mulher, que não sei de onde saiu, porque surgiu de repente ao lado da vendedora, não estava totalmente errada. Mas queria me provocar.

O lenço sempre foi usado por povos árabes, assim como os gaúchos usam chapéus, não sendo uma exclusividade palestina.

Mas não era isso que ela queria impor na conversa a que não foi chamada.

Quando disse que “não existe lenço palestino”, ela não quis dizer que, antes de ser palestino, o lenço é árabe. Ela quis me enquadrar e dizer: esse lenço não é propriedade dos palestinos.

Ela se incomodou com a definição do lenço como sendo palestino. Perturbou-se com a palavra palestino. Ficou incomodada com a minha procura por algo palestino.

E o keffiyeh é, há muito tempo, mais palestino do que qualquer outro símbolo da resistência do povo árabe.

Há belos textos na internet sobre essa ligação do keffiyeh com a luta de todos os povos árabes, palestinos, islâmicos, muçulmanos, por definição étnica e religiosa.

Há relatos mostrando que Arafat não seria o que foi sem o keffiyeh na cabeça. Há muita informação sobre como os palestinos passaram a usar o keffiyeh para desafiar o domínio inglês, antes da invasão sionista.

Se voltar cem vezes ao centro e procurar um lenço palestino, nas mesmas circunstâncias, não terei de novo ao meu lado uma mulher incomodada com a palavra palestino. Ou será que terei?

De onde saiu aquela incomodada? Será que fica ali à espreita de quem chega perguntando se há lenço palestino?

E eu só queria um keffiyeh, para enrolar no pescoço no almoço que teria logo depois numa confraria de amigos jornalistas.

Não por moda (porque a única moda a que aderi foi a das roupas e cabelos dos anos 70), mas por expressão de engajamento político. Acho que posso.

Não é apropriação cultural, não venham com essa conversinha chata. É tentativa de engajamento mesmo.

Um dia desses irei às lojas de libaneses, palestinos e descendentes de todos os povos que ainda resistem, para comprar meu keffiyeh.

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