ABRÃO SLAVUTZKI E O PODER DA ASTÚCIA

O poder da astúcia

Abrão Slavutzki

Psicanalista

Ulisses é o herói da astúcia, foi quem inventou o cavalo de Troia, e assim os gregos venceram a guerra. Já no canto XII da “Odisseia” ocorre o episódio das sereias, em que Ulisses satisfaz o desejo de escutá-las, mas por estar amarrado ao mastro do navio não foi ao encontro da morte. Sua história é uma viagem perigosa, é a passagem da natureza à cultura, do desejo ao domínio das pulsões, é uma conquista difícil.

Astúcia é a busca de satisfazer o desejo, e, não renunciar ao desejo, como fez Sherazade, uma mulher astuta. Ela contava histórias, e a cada noite a história seduzia o rei que desejava saber como seguia, logo não matava a esposa e terminou sendo curado. Foram centenas de histórias que deram origem ao livro “Mil e uma noites”. E tem a injustiçada Eva da Bíblia, mulher que optou pelo conhecimento ao comer o fruto da árvore proibida, e assim nos fez humanos através do erotismo.

A palavra astúcia vem do latim, “astutia”, e expressa a manha, o engano, o ardil, a sagacidade, a inteligência prática. Astúcia é preciso para vencer a arrogância, a indolência, a desesperança, para suportar as desgraças e assim desfrutar das graças. Astúcia requer paciência, humildade, aprendizagem com parcerias que somam Astúcia da capoeira criada pelos negros na escravidão que juntaram dança, música e luta em rodas fraternas.

É preciso astúcia na construção de laços de amizade, laços amorosos consigo mesmo e com os demais. Laços que diminuam a necessidade de castigo. Com astúcia, José interpretou os sonhos do Faraó do Egito e assim transformou-se de preso em ministro.

Os artistas e cientistas, os que amam o conhecimento, precisam da astúcia para inventar, criar o novo. Que difícil, por exemplo, é escrever, pois as palavras escapam, têm muitos sentidos e nunca se sabe com certeza quais escolher. Aí são os leitores que orientam os viciados na escrita, pois não existe escritor solitário sempre.

Nos esportes, nas competições, no trabalho, na arte de amar, se requer astúcia para se saber fraco, como o fez Ulisses no episódio das sereias, e Mandela nos seus 27 anos de prisão. Ambos conseguiram, diante de forças poderosas, encontrar os meios para sobreviver, a paciência diante dos fracassos.

Entretanto, não se pode esquecer que astúcia não é só virtude positiva, pois pode estar a serviço da crueldade, como é o caso dos bandidos. Os bandidos fora da lei e, mais ainda, os terríveis bandidos protegidos pela lei, como se vê cada vez mais.

Também na guerra a astúcia é essencial, e aí pode vencer a turma do mal, como foi o caso dos impérios, ou a guerra da informação, onde as mentiras tendem a se impor diante das verdades. Astúcia política, às vezes, envolve qualidades canalhas, onde matar para lucrar é a pior das corrupções. Forças desalmadas se vendem como honestas, mas se revelam mais cruéis que a corrupção, ao buscar ordem só para seu progresso. O país das forças desalmadas com armas e sem armas se aproxima hoje da velha Sicília, onde o crime não tinha castigo, porque a tradição histórica impedia a revelação da verdade.

Foi muito difícil desmontar o poder nazista, o fascismo, as ditaduras militares, mas hoje há um novo desafio: criar astúcias para diminuir o poder dos inimigos internos da democracia, como Trump e os trompetes.

A sabedoria é a forma mais elevada de uma sociedade que requer tolerância, prudência, inovação e a busca da justiça que não aceita pressões das armas. É preciso astúcia, unir as forças nas odisseias da vida e manter o sentimento do mundo. Bravos são os amantes da poesia, do conhecimento, das parcerias amorosas apesar do desânimo.

Apesar do fogo dos dragões armados, apesar do cansaço, apesar dos pesares, a dignidade da luta está na paciência e no entusiasmo.

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