OS PAIS DE IGOR

Repete-se todo ano o desconforto de que não há mais o que dizer sobre a tragédia da Boate Kiss, que completa uma década nessa sexta-feira.

Mas não há como não dizer de novo que o sistema de Justiça é, desde a tragédia, o algoz previsível de um drama sem fim.

Previsível porque se sabia que seria assim nesse caso, no caso de Brumadinho, de Mariana e de todas as grandes perdas coletivas em que a vítima é o povo anônimo.

Repete-se a frase: é inacreditável que, por um erro do Ministério Público, ninguém tenha sido condenado até hoje.

Por que inacreditável, se é assim sempre? Se a tragédia da Kiss e outras tragédias são mantidas vivas e sem reparação pela lerdeza da Justiça. Mas que não se deixe de falar da Kiss e das suas 242 vítimas.

O que guardo como jornalista daquele dia 27 de janeiro de 2013, no Hospital de Caridade de Santa Maria, é também o meu mais perturbador questionamento, durante um trabalho, sobre a relevância e os limites do que eu fazia em situações como aquela.

Foi minha última saída a campo, como se diz no jornalismo, e quando me perguntei sobre o que já me inquietava na juventude: o que estamos fazendo aqui que não seja invasivo, inconveniente, inadequado ou mesmo antiético?

Estávamos tentando contar, como se faz nas guerras, nas tragédias humanas em todas as áreas, no massacre dos yanomamis, como vida e morte se entreolham, se estranham e se abraçam.

É preciso falar das tragédias. Mas vai explicar que essa é a missão de um jornalista a um pai desesperado.

Pois assim foi. Minha última experiência como repórter de Zero Hora me devolveu ao meu tempo de grandes interrogações, quando ainda achava que todas teriam respostas.

A pergunta salta na nossa frente. Como saltou quando eu já me preparava para sair do hospital, onde havia passado a tarde.

No saguão, um pai em desespero, sendo quase carregado por familiares, veio do corredor, me enxergou ao ver ao meu lado a fotógrafa Adriana Franciosi erguer a máquina, andou na minha direção e gritou:

– Tu sabia, tu sabia. Tu sabia?

Eu e Adriana (que chegara naquele momento à entrada do hospital) tentamos conter o homem e um rapaz da família, e não sei como nos livramos daquela situação.

Um pai gritava e investia contra dois jornalistas, porque não queria ser fotografado, e não havia o que fazer a não ser entendê-lo. Era preciso entendê-lo.

A família tinha sido informada sobre a morte do filho. Eu havia passado a tarde no hospital em contato com eles e com dezenas de famílias na mesma situação.

Circulei pelo hospital, andei pela ala em que encaminhavam doentes para Porto Alegre e outros hospitais, convivi com o desespero de quem implorava: onde está meu filho?

Onde está meu irmão? Onde está minha amiga, minha prima? Nos corredores, no pátio do hospital, no saguão, no canteiro da avenida, todo mundo queria saber de alguém.

E aquele pai que me viu como o mensageiro que se calara, aquele pai queria saber do filho desde manhã cedo.

E o nome do filho dele, os nomes dos filhos de todos os outros que não obtinham respostas, dos irmãos, das amigas, das primas sumidas desde o incêndio, os nomes deles e delas não apareciam nas listas do hospital.

Porque eles não estavam ali. A maioria nunca esteve. Mas aquele pai queria que estivesse.

Eles perguntavam nos guichês, batendo em portas, atacando enfermeiras, eles queriam que os filhos estivessem ali.

E os nomes dos não encontrados não apareciam nas listas coladas nas paredes porque eles deveriam estar no único local onde ninguém queria procurá-los. Estavam no ginásio do Centro Desportivo Municipal.

Se não estavam no hospital, se os seus nomes não apareciam nas listas, eles estavam em fileiras no chão do ginásio. Estavam mortos.

O pai que veio na minha direção, depois de conversar comigo durante a tarde, me enxergava como alguém que o havia enganado.

O filho dele estava morto, mas ele e a família não queriam sair do hospital, prolongando o autoengano para fugir da morte.

E eu não sabia, mas intuía, onde estavam os filhos, as irmãs, os amigos de todos os procurados que não tinham nomes nas paredes.

Famílias passaram o dia no hospital, andando de um lado para outro, consoladas pela esperança que se esvaía no fim do dia: os nomes não estão aqui, mas é tanta gente que eles devem estar em algum lugar e esse lugar precisa ser aqui.

Sair do hospital e ir ao ginásio era ser derrotado pela verdade. Aquele pai desesperado, informado não sei como e por quem, ao final da tarde, pode ter ouvido de alguém que o filho nunca passou pelo hospital.

E eu, jornalista que tudo deveria saber, sabia que o filho dele havia morrido. É o que ele tinha certeza.

Ele poderia achar que eu sabia e estaria ali no saguão de tocaia com uma fotógrafa, quando o que fazíamos naquele momento era um esforço para tomar ar. Eu o entendi e entendo cada vez mais.

Vejo hoje a cara daquele homem magro transtornado vindo na minha direção, e vejo o rapaz que estava com ele e saltou em mim e em Adriana.

Eu não sabia, mas sabia. Os filhos, as irmãs, os amigos deles todos estavam mortos no ginásio.

Porque eu sabia que essa era a alternativa. A terrível alternativa da qual eles fugiam: procurem os seus filhos no ginásio.

Por uma tarde, pais, irmãs, amigos, colegas os mantiveram vivos, prolongando um engano que poderia fortalecê-los para o que viria.

E foi assim que perdi, depois da tragédia da Kiss, qualquer resquício de certeza sobre os limites da intromissão de um jornalista na dor que não é dele, no exato momento em que essa dor se manifesta.

Meu abraço ao pai, à mãe, aos irmãos e às primas de Igor Stephan Pereira, o menino que eles procuravam naquele dia 27 de janeiro no Hospital de Caridade e que no dia seguinte faria 20 anos.

(Abaixo, o link para a cobertura de Zero Hora)

https://issuu.com/gauchazh/docs/zh-28.01.2013-ano_49-n_17.278-2_edi_o_-_santa

3 thoughts on “OS PAIS DE IGOR

  1. Muito triste! Aliás, creio não haver palavras que possam descrever tamanha tristeza!
    O pior é pensar (e saber) que todas essas tragédias vêm da mesma fonte: a ganância… Não das vítimas, claro, mas dos responsáveis (nunca responsabilizados) por essas tragédias!

  2. Tragédias sempre acontecem, é meio inevitável, por mais que se tenha segurança, controles, etc. Agora o que fazemos quando tragédias acontecem é que deve ser mudado. Parece que a indignação é somente dos diretamente envolvidos. A sociedade compra a notícia, lê e segue o dia normalmente. Foi assim com a Kiss, com Brumadinho, com Mariana, com Bolsonaro e vai ser assim no futuro. Não são só os jornalistas que devem fazer uma autoavaliação do seu papel na busca de notícias, que limites não podem ser ultrapassados, que abordagens são as melhores em caso de tragédia com perda de vidas. A sociedade como um todo precisa urgentemente desta avaliação. Nossa indignação não deve ser passageira, só para inglês ver. Se ela fosse genuína, talvez o judiciário, se sentindo pressionado pelo peso de toda uma sociedade unida, fosse mais ágil e correto. E sendo mais ágil e correto, talvez isso poderia evitar algumas tragédias, principalmente aquelas causadas por omissão ou falta de conhecimento de alguém.

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