QUEM MATOU VALODIA?
O Brasil tem um presidente que elogia torturadores e os considera seus ídolos. No Uruguai, muitos dos torturadores da ditadura dos anos 70 e 80 ainda não morreram e não dormem direito. O Ministério Público não deixa.
Em meio à pandemia, um promotor assombra os assassinos do médico Vladimir Roslik, o Valodia, torturado e morto em 16 de abril de 1984. É Ricardo Perciballe, especializado em delitos de lesa humanidade.
Uma juíza rejeitou o pedido para reabertura do caso de Valodia, que foi parar no Tribunal de Apelações Penais. Novamente o apelo do MP foi rejeitado. Em março, Perciballe recorreu à Suprema Corte. É um dos assuntos políticos de hoje no Uruguai.
O caso é emblemático, porque o médico de 43 anos, acusado de ser militante comunista, foi o último dos 120 assassinados pela ditadura, acusada também pelo desaparecimento de pelo menos 170 pessoas.
Por isso, o argumento do promotor é poderoso: ele quer saber tudo do crime não só para que o Estado ofereça respostas à mulher e ao filho de Roslik, mas “por razões históricas”.
O médico foi morto quando a ditadura já estava no fim. Foram buscá-lo em casa, em San Javier, e o levaram para o Batalhão de Infantaria da cidade de Fray Bentos. Antes, em 1980, ele já havia ficado um ano preso sob a acusação de colaborar para um plano de invasão de comunistas russos pelo Rio Uruguai.
Um dia depois da prisão, sem explicações sobre as causas da morte, devolveram o corpo à mulher, María Cristina Zavalkin, que tinha um filho de colo, Valery (os dois na foto com Roslik).
Hoje, mãe e filho participam da empreitada pelo esclarecimento do assassinato, porque María Cristina teve um gesto corajoso, logo depois de receber o marido morto.
Levou o corpo a uma cidade próxima e conseguiu a prova, por autópsia, de que Roslik havia sido torturado. Como o Uruguai se encaminhava para a redemocratização, o caso ganhou repercussão.
Mas somente um oficial foi condenado, o major reformado Sergio Caubarrere, que ficou preso apenas quatro meses e 18 dias, depois de julgado pela Justiça Militar.
O processo nunca mais foi reaberto, porque prevaleceu no Uruguai, após a redemocratização, um ano depois da morte do médico, o entendimento de que a Justiça Comum não lidaria com crimes ‘militares’ da ditadura.
É o que o promotor Ricardo Perciballe está tentando reverter, sob o argumento – que não prosperou no Brasil – de que não há prescrição de crimes contra a humanidade. As tentativas para reabrir o caso foram feitas em 1987, 2014 e agora.
O promotor, a viúva e o filho querem saber quem, além do major que no fim nem foi punido, teve participação na morte do médico, que não seria nem simpatizante do comunismo.
Valodia era descendente e morador de uma comunidade fundada por imigrantes russos e estudou em Moscou, o que fez com que a ditadura o perseguisse.
Seu rosto é um dos quase 300 retratos que todo o dia 20 de maio os uruguaios carregam pelas ruas, no Dia do Silêncio, para que o país não esqueça as vítimas e os crimes dos militares.
No Brasil, quase tudo foi esquecido pela Justiça, apesar da bravura dos que lutaram – e até agora fracassaram – pela punição dos que cometeram crimes de desaparecimento, tortura e morte.
A anistia foi geral e irrestrita, é o que dizem. Por isso, Brilhante Ustra é até hoje homenageado por Bolsonaro e pelos filhos, sem a mínima reação dos militares.
Aqui, o silêncio dos que poderiam falar acoberta os crimes da ditadura.
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O DOCUMENTÁRIO
Para quem quiser conhecer a história do médico morto por ser descendente de russos, Juliá Goiyoaga dirigiu um documentário sobre a história de Valodia. Corra o cursor até o link abaixo.