Um general sem medo dos colegas assassinos
Uma cena inimaginável no Brasil, registrada na manhã de 24 de março no bairro da Recoleta, em Buenos Aires, pelos repórteres Javier Fuego Simondet e Valeria Musse, do jornal La Nación.
Um grupo caminha em direção à Praça de Maio, no Dia da memória, verdade e Justiça, que marca a data do golpe militar de 1976 contra Isabelita Perón.
Na Avenida Santa Fé, quase esquina com Ayacucho, os manifestantes antifascistas param para saudar uma figura que enxergam dentro de um café. Um homem que em junho completa 90 anos.
É o general Martín Antonio Balza, o militar que os democratas argentinos reverenciam e aplaudem. É herói da Guerra das Malvinas e foi chefe do Exército de 1991 a 1999.
Em 1995, durante entrevista a um programa de TV, ao vivo, surpreendeu o país ao puxar um papel do bolso e anunciar:
“Quero iniciar um diálogo doloroso sobre o passado, um diálogo doloroso que nunca foi mantido e que se agita como um fantasma sobre a consciência coletiva, voltando estes dias irremediavelmente das sombras onde ocasionalmente ele se esconde”.
E deu uma ordem aos seus comandados:
“Sem buscar palavras inovadoras, mas apelando aos velhos regulamentos militares, aproveito esta oportunidade para ordenar uma vez mais ao Exército, na presença de toda a sociedade: ninguém está obrigado a cumprir uma ordem imoral ou que se afaste das leis e dos regulamentos militares. Quem o fizer incorre em uma conduta viciosa, digna da sanção que sua gravidade requeira”.
Mas esse é o trecho mais importante da fala do general, depois da admissão dos crimes cometidos por seus colegas de altas e baixas patentes:
“O Exército sequestrou, torturou e assassinou e pede perdão por esses crimes, gerados por outro crime, o golpe de Estado. (…) Venho pedir perdão por isso e assumir a responsabilidade política pelo desatino cometido no passado”.
Balza é, pelas exigências de parte das esquerdas, um general democrata imperfeito ou incompleto, por ter algumas posições controversas e não ter reconhecido o direito à luta armada dos que agiram na clandestinidade.
Mas é respeitado até hoje pelo gesto do pedido de perdão, como comandante do Exército. Afirmou que os militares perseguiram, torturaram e mataram e pediu desculpas aos argentinos.
Foi também a partir de suas declarações (e da sua imposição como chefe militar, que impediu levantes de colegas, nos anos 90, com novas tentativas de golpe), que a sociedade civil se encorajou a enfrentar o poder fardado.
O país descobriu com Martín Balza que tinha generais legalistas capazes de denunciar, como ele fez em 2000, a existência de estrutura oficial, dentro do Exército, para sequestrar bebês de presas políticas.
Por isso o aceno dos piqueteiros que passavam pela Santa Fé, no 24 de março, é inimaginável hoje no Brasil. Primeiro, porque já morreram os militares que resistiram a golpes com a bravura do marechal Teixeira Lott, que em 1955 garantiu a posse Juscelino Kubitschek e João Goulart.
Não existem mais o brigadeiro Rui Moreira Lima, o coronel da Aeronáutica Alfeu de Alcântara Monteiro, o capitão Sergio Ribeiro Miranda de Carvalho, o Sergio Macaco. Todos enfrentaram o golpe e a ditadura iniciada em 64.
Não existem mais os 6,5 mil militares perseguidos por colegas militares e expulsos das Forças Armadas por serem democratas. Alguns deles foram torturados e assassinados nos anos 60 e 70.
Por isso nunca tivemos e talvez nunca venhamos a ter um general que faça o que Balza fez na Argentina e peça perdão, publicamente, pelas perseguições, cassações, torturas e assassinatos durante a ditadura.
Não um general avulso, mas um líder do Exército, falando em nome das forças que representa e do governo que o acolheu como comandante militar. Nunca tivemos um Balza.
Assim como nunca tivemos generais presos por articular golpes e comandar torturadores e assassinos. Ainda é tempo? Pode ser. Mas nessa geração? Nesse estágio em que generais golpistas nem golpe conseguem aplicar?
Chegaremos ao dia em que um general chefe do Exército admitirá para todo o país que as organizações militares abrigaram criminosos?
Desejamos que os jovens de hoje vejam um dia um general pedir perdão. Em nome da memória do marechal Henrique Batista Duffles Teixeira Lott e dos 6,5 mil militares que lutaram pela democracia ao lado de professoras e professores, estudantes, operários, jornalistas, servidores públicos, políticos, engenheiros, sapateiros, agricultores e de todos os que ainda combatem o fascismo impune, principalmente o fascismo fardado.